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INTOLERÂNCIA RELIGIOSA

Em busca de respeito pelas religiões de matriz africana

Integrantes dessas religiões costumam ser alvos constantes de violência e pais e mães de santo sofrem ameaças

Imagem ilustrativa da notícia Em busca de respeito pelas religiões de matriz africana camera "Outros (pais de santo) são expulsos até de bairro, fogem com medo, e eu quero apenas ter a minha liberdade para exercer os meus cultos, símbolos sagrados”, Mãe Patrícia de Iemanjá | Mauro Ângelo

A máscara no rosto esconde o sorriso, mas não abafa o som das palavras de acolhida que a mãe Patrícia de Iemanjá fala ao abrir as portas da sua casa. Construído em madeira, o espaço lembra um grande barracão. Ao cruzar a porta, ficamos na frente das imagens dos orixás e divindades que regem o terreiro de mina nagô Iemanjá. São imagens de caboclos, entidades e santos que guiam espiritualmente mãe Patrícia. De baixa estatura e voz calma, é neta de pajé e desde cedo aprendeu a trabalhar a espiritualidade.

Ela prefere ficar de pé, no centro do terreiro, para contar a sua história. “Aqui, na minha casa e na delegacia de Outeiro, eu sou conhecida como ‘mãe Patrícia resistente’ porque já são anos lutando para conseguir respeito”, conta.

O terreiro de mãe Patrícia fica na comunidade Nova Vida, em Outeiro. Há três anos ela sofre ameaças e ofensas. Com um dos que a ameaça, tem uma batalha judicial que caminha a passos lentos. A casa dela já foi invadida, a porta arrombada e até uma cruz de sal já foi feita na frente do terreiro. Uma tentativa para expulsá-la da comunidade.

“Essa nossa comunidade é uma área de ocupação. Os primeiros moradores não se incomodavam com a minha religião, nem com os meus cultos. Mas depois outras pessoas se mudaram para cá e passaram a se manifestar publicamente contra mim, dando claros sinais de intolerância religiosa”, comenta. “Essa situação começou em 2017 e de lá para cá não vivo em paz porque temo por mim, pelos meus clientes e meus filhos de santo”, frisou mãe Patrícia de Iemanjá.

Em uma das ameaças que sofrera, o acusado chegou a afirmar que a qualquer momento iria “entrar na casa dela e cortar todo mundo que estivesse lá dentro” – conforme consta nos textos de um dos três boletins de ocorrência policial que ela já registrou.

Uma das queixas foi feita na Delegacia de Crimes Discriminatórios e Homofóbicos, em 27 de julho de 2017. Naquele ano, além de mãe Patrícia, outras três pessoas registraram ocorrência por crime de intolerância religiosa na unidade especializada. Foram quatro denúncias no total. No ano seguinte, em 2018, o total de ocorrências registradas subiu para nove, ou seja, mais que dobrou. Os dados são da Secretaria de Estado de Segurança Pública e DefesaSocial (Segup).

“Foi uma situação muito difícil. A equipe que me atendeu, na época, não deu a importância devida para o meu caso. Desmembraram a ocorrência, ficando um processo por injúria e outro por ameaça. Na Justiça enfrento dificuldades porque nas audiências de injúria não querem ouvir os relatos da ameaça e tudo aconteceu junto. Como separar a ameaça da intolerância, se a intolerância também foi manifestada com ameaças?”, questiona.

“Chegaram a definir que o caso era ‘briga de vizinhos’ o que não é”, comenta. A última audiência do caso ocorreu em novembro de 2018. “A Justiça, o Ministério Público, parece que vão esperar o pior acontecer para poderem agir conforme a lei”, prossegue a mãe Patrícia, que recorreu a Comissão de Direito e Defesa da Liberdade Religiosa da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Pará (OAB/PA), paraconseguir auxílio.

Intolerância religiosa no ambiente escolar

A situação que mãe Patrícia de Iemanjá vive é uma entre tantas outras manifestações de intolerância religiosa que existem na sociedade. Um relatório de 2016 do então Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos apontou que entre os anos de 2011 a 2015, a imprensa brasileira noticiou 409 casos de intolerância religiosa. Em mais da metade das ocorrências (53%) o alvo foram as religiões de matriz africana.

Chama a atenção neste relatório sobre Intolerância e Violência Religiosa no Brasil o fato de que 35 manifestações de intolerância religiosa aconteceram no ambiente escolar. No mesmo ano em que o documento foi publicado, aconteceu numa escola particular em Ananindeua, Região Metropolitana de Belém, o episódio em que um grupo de estudantes foi proibido de apresentar um trabalho que apresentava como tema uma divindade afro-brasileira. O fato repercutiu nacionalmente com a veiculação de um vídeo dos alunos discutindo com a diretora da escola. Ela argumentava que a unidade tinha um “princípio cristão”.

"Além disso, pesa também a resistência causada pelo racismo estrutural presente por conta da nossa história”, Helena Rocha
📷 "Além disso, pesa também a resistência causada pelo racismo estrutural presente por conta da nossa história”, Helena Rocha |Mauro Ângelo

A pesquisadora Helena Rocha, que coordena o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros (Neab) do Instituto Federal do Pará (IFPA), lembrou que a lei nº 10.639/03 - que tornou obrigatória no currículo escolar a história africana e a cultura afro-brasileira - completou 17 anos e ainda existe resistência para a implementação da legislação. “Existe uma lacuna na formação dos professores sobre a temática e escassez de material didático (produtos educacionais)”, aponta a professora , ao sinalizar o que falta para que a implementação da lei seja efetivada. “Além disso, pesa também a resistência causada pelo racismo estrutural presente por conta da nossahistória”, comenta.

Taissa Tavernard também defende a inclusão de estudos sobre a cultura africana. ”É preciso que esse debate seja levado para a comunidade escolar de forma mais ampla acessando discentes, docentes, corpo técnico, serventes e técnicos. Faz-se necessário falar sobre o sagrado afro-brasileiro a fim de desconstruir estigmas. É preciso falar sobre as semelhanças existente entre as religiões e explicar a lógica do que é diferente”, resume.

"Vivemos um cenário de retrocesso político que leva ao retrocesso social. Isso faz insurgir o aumento da violência física e simbólica contra as comunidades afro-brasileiras”, Taissa Tavernard
📷 "Vivemos um cenário de retrocesso político que leva ao retrocesso social. Isso faz insurgir o aumento da violência física e simbólica contra as comunidades afro-brasileiras”, Taissa Tavernard |Acervo Pessoal

“Os povos tradicionais de matriz africana não precisam ser tolerados, eles precisam ser respeitados. Se for para eu morrer por intolerância religiosa, quero morrer na minha casa e gritando por respeito”, afirma mãe Patrícia. “Outros (pais de santo) são expulsos até de bairro, fogem com medo, e eu quero apenas ter a minha liberdade para exercer os meus cultos, símbolos sagrados”, pede.

AGRESSÕES

A pesquisadora da Universidade do Estado do Pará Taissa Tavernard, que também é sócia benemérita da Federação Espírita e Umbandista dos Cultos Afro-Brasileiros do Estado do Pará, estima que existem pelo menos três mil terreiros em toda a Região Metropolitana de Belém e que agressões a estes espaços são cada vez mais frequentes. “É muito comum os pentecostais e neopentecostais despejarem sal ungido numa tentativa de ‘exorcizar’ os templosafricanos”, ressalta.

Ela também cita outras manifestações de intolerância religiosa contra os povos de matriz africana. “A demonização das divindades, o desrespeito com os símbolos africanos em espaços públicos como escolas e repartições”, aponta, ao lembrar que não há na cidade elementos que ajudem a valorizar a comunidade de umbandistas e de mina nagô. “Existe uma invisibilidade dessas religiões no cenário urbano. Você não vê um monumento dedicado a essa comunidade”, acrescenta Taissa.

O atual cenário político no Brasil é motivo de preocupação para a pesquisadora. Isso porque, segundo ela, o contexto contribui para a desconstrução do Estado laico. “Vemos o crescimento das bancadas cristãs aliadas a bancada da bala em todas as instâncias políticas. Temos vivenciado cortes de verbas que eram destinadas a projetos sociais destinados a comunidades tradicionais, sobretudo para as comunidades negras”, observa. “Vivemos um cenário de retrocesso político que leva ao retrocesso social. Isso faz insurgir o aumento da violência física e simbólica contra as comunidades afro-brasileiras”.

Denúncias

Casos -Em 2018, 9 casos de intolerância religiosa foram registrados na Delegacia de Crimes Discriminatórios e Homofóbicos. Em 2015, apenas um caso foi registrado.

Delegacia - Delegacia de Combate aos Crimes Discriminatórios e Homofóbicos: Rua Avertano Rocha, entre as travessas Padre Eutíquioe São Pedro.

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