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ABUSO SEXUAL

Falta de orientação e proximidade de agressor com vítima dificulta denúncia

Caso de uma menina que engravidou após ser abusada sexualmente pelo tio traz à tona um crime que infelizmente ainda é frequente no país e que tem consequências sérias principalmente para a vítima

Imagem ilustrativa da notícia Falta de orientação e proximidade de agressor com vítima dificulta denúncia camera Falta de orientação e proximidade agressor com a vítima são fatores que dificultam a denúncia. | Reprodução

O caso da criança de dez anos, grávida após ser vítima de abuso sexual, no município de São Mateus, estado do Espírito Santo, mobilizou todo o país nas últimas semanas. Desde o comunicado do crime a polícia, no dia oito deste mês, até a realização do aborto legal, na última segunda-feira (17), a criança se viu em uma verdadeira saga para ter o seu atendimento, garantido por lei, realizado.

Ela foi obrigada a viajar para o estado de Pernambuco, apenas para realizar o procedimento de interrupção da gravidez. Não sem antes enfrentar, ao lado da avó e da equipe médica responsável pelo procedimento, a pressão de grupos ultraconservadores e ligados a instituições religiosas que tentaram impedir o aborto legal. Tudo isso após a extremista de direita Sara Giromini expor, nas redes sociais, o nome da criança e o hospital em que ela estava internada, violando diversos artigos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Toda essa repercussão acendeu o sinal de alerta sobre a rede de atendimento voltada a crianças e adolescentes vítimas de violência física e sexual existente no país, além de destacar a importância de garantir um atendimento psicológico adequado, ao mesmo tempo em que o procedimento policial deve ser feito para identificação dos criminosos.

De acordo com dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019, nos anos de 2017 e 2018, foram registradas 127.585 ocorrências de estupros. Sendo desse total, 63,8% destes crimes cometidos contra crianças de 0 a 13 anos, considerada juridicamente incapaz para consentir relação sexual. Dentro dessa porcentagem, pelo menos 81,8% dos crimes foram cometidos contra meninas.

O estupro de vulnerável é definido como ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos. Se enquadra neste crime também a prática com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência. Em todos os casos de crimes de estupro de vulnerável no país, pelo menos 75,9% dos autores são pessoas conhecidas. Sejam aqueles que moram próximas a vítima, como inclusive indivíduos que integram a família. Além disso, 96,3% dos autores deste crime são do sexo masculino.

Falta de padrão de comportamento é obstáculo para identificar se há algo errado

A professora da Faculdade de Psicologia da Universidade Federal do Pará, Milene Cardoso, afirma que além da proximidade do autor deste crime com a vítima dificultar a denúncia de forma imediata, a ausência de um padrão de comportamento também compromete a identificação de que algo está errado com a criança. As alterações podem ser das mais diversas, desde aquelas relativas ao sono e alimentação, na primeira infância, como alteração comportamental e emocional na adolescência. “A primeira coisa que a gente precisa dizer é que não existe um padrão de comportamento da vítima. As crianças manifestam que estão tendo algum tipo de abuso de diversas maneiras e isso vai depender da sua idade, de quem é o agressor, por quanto tempo a criança está sofrendo a violência e essa manifestação, com as alterações de comportamento, vai depender do tipo de abuso e de como ele está ocorrendo”, relata.

Apesar disso, a especialista afirma aos responsáveis para que observem qualquer mudança física no corpo da criança, como lesões e outras marcas pelo corpo. “Em caso de abuso sexual, é importante observar o corpo da criança. Quando você for cuidar dela na hora do banho, por exemplo, atentar sobre como está a higiene íntima. Os pais e professores precisam estar atentos a uma série de circunstâncias da rotina dela. É importante que ela vá periodicamente ao médico pediatra porque o profissional de saúde tem mais condições de fazer exames clínicos e detectar algo errado”, observa.

Milena Cardoso explica que pais e professores precisam estar atentos a uma série de circunstâncias na rotina da criança
📷 Milena Cardoso explica que pais e professores precisam estar atentos a uma série de circunstâncias na rotina da criança |Alberto Bitar

Além dos traumas físicos, é preciso manter uma atenção importante à saúde mental de crianças que foram vítimas de violência sexual. O estupro de vulnerável é um crime grave que, de acordo com Milene, deixa marcas para toda a vida. Podendo inclusive alterar de forma permanente as interações sociais da vítima no futuro. “Essa criança vai sofrer muito com a dificuldade de confiar nas pessoas porque não saberá discernir quem está fazendo mal a ela ou não e isso vai impactar nas interações sociais para o resto da vida. As pessoas não têm ideia do impacto que isso pode causar, tanto na saúde física como emocional”, conta.

TRAUMAS

A falta de um acompanhamento psicológico constante pode causar os mais diversos traumas que podem desencadear algo mais grave com o avanço da idade. “A criança pode ficar mais vulnerável a situações de conflitos, com dificuldades na escola e criação de amizades. Algumas adolescentes que tenho acompanhado ficam mais suscetíveis a se envolverem com drogas e a autoestima delas fica muito prejudicada. As sequelas são diversas e podem prejudicar várias situações da vida, desde situações amorosas como relações profissionais. O abuso não impacta apenas no momento do ocorrido”, esclarece.

Como se não bastasse todos estes problemas, a desconfiança e falta de apoio por parte da sociedade, incluindo a família, ainda pode causar algo chamado de “revitimização”, que é quando a vítima de violência, sobretudo aquelas mais vulneráveis, passam por diferentes formas de pressão repetidas vezes. Foi o que aconteceu, por exemplo, com a criança citada no início desta reportagem. “As pessoas julgam muito mal estes casos. Só porque a criança não revelou imediatamente que foi vítima de abuso a sociedade acha que de alguma forma ela poderia estar conivente com aquilo e até mesmo insinuam que ela estaria gostando. Isso causa um grande conflito porque em geral elas são ameaçadas. O caso dessa criança foi ainda mais horrível porque pensamentos muito conservadores, que inclusive ferem os direitos de crianças e adolescentes, fizeram com que pessoas desconhecidas se encaminhassem a um hospital para chamar uma criança de assassina. Isso é revitimização, com certeza”, declara a psicóloga Milene.

No Brasil, o aborto é legalizado quando a gravidez é recorrente de estupro, incluindo crianças; se a gravidez representar risco a mulher e, por fim, em caso de não formação do cérebro do feto (chamado de anencefalia fetal).

Atendimento do ParáPaz Integrado se tornou referência no estado

No Pará, desde 2004 a Santa Casa possui uma unidade de atendimento a crianças e adolescentes vítimas de violência sexual que se tornou referência no estado. Chamado de ParáPaz Integrado, possui atualmente 13 polos: além da Santa Casa de Misericórdia, o serviço tem espaços para atendimento no Centro de Perícias Científicas (CPC) Renato Chaves (provisoriamente funcionando na unidade ParáPaz Mulher, no bairro do Marco), em Belém; na Delegacia Especializada no Atendimento à Criança e Adolescente (Deaca), em Ananindeua; além dos municípios de Altamira, Breves, Bragança, Marabá, Paragominas, Parauapebas, Santa Maria, Santarém, Tucuruí e Vigia.

“Fomos um dos primeiros estados a implementar uma rede articulada em um único espaço, evitando que a criança vá em várias instituições e isso é um grande avanço. Mesmo com a dificuldade da pandemia, a instituição continua atendendo. Mas apenas isso não basta. É preciso ter educação sexual nas escolas e em casa. Que pais e professores não transfiram responsabilidades. É um dever de toda a sociedade cuidar das crianças”, completa a professora Milene Cardoso.

DADOS

Os últimos dados da Fundação ParáPaz são referentes ao período de janeiro a abril deste ano. Com o registro de 691 novos casos de violência, contra crianças e adolescentes. Já no ano passado, os atendimentos totalizaram 3.502 casos em todo o Estado, com a faixa etária mais recorrente dos acolhimentos de 12 a 14 anos de idade.

Ainda de acordo com informações coletadas no site da instituição, apenas as unidades localizadas em Belém (na Santa Casa de Misericórdia e CPC Renato Chaves), a Fundação ParáPaz constatou que 11,73% dos casos de violência contra crianças e adolescentes ocorreram no bairro do Guamá, seguidos de 7,9% no bairro da Pedreira, em Belém.

O levantamento ainda mostra que o estupro de vulnerável lidera as ocorrências com 38,4%, seguido de suspeita de estupro, com 57% dos casos.

População pode e deve denunciar casos, afirma delegada

A delegada Joseangela Santos é a titular da Diretoria de Atendimento a Grupos Vulneráveis, da Polícia Civil, que investiga crimes de violência cometidos contra crianças e adolescentes. Ela afirma que apenas em Belém pelo menos três delegacias atendem especialmente ocorrências deste tipo, mas mesmo com toda a estrutura a dificuldade da denúncia por parte da vítima ainda é o principal desafio a ser superado já que, na maioria dos casos, o agressor está dentro do círculo familiar, fazendo com que a vítima tenha medo de que não acreditem em seu relato. “A maioria dos casos conta com um agressor dentro de casa. Não é um estranho, alguém tem a confiança da família e por isso é muito importante trabalhar a questão da sexualidade para que essa criança possa entender as diferenças e perceba que algo está errado e assim contar para algum familiar”, afirma.

No Pará, foram registrados 969 boletins de ocorrência de violência contra crianças e adolescentes, apenas na Diretoria de Atendimento a Grupos Vulneráveis. Em 2020, entre os meses de janeiro e julho, já foram registrados 560 boletins de ocorrência. Apesar dos números abordarem todos os tipos de violência, a diretora da instituição afirma que pelo menos 90% são referentes a violência sexual. Na última semana, dois mandados de prisão referente a violência sexual foram cumpridos, um deles com o acusado sendo preso em Oeiras do Pará por um crime cometido em Belém. A investigação durou dois anos.

Com a pandemia, o trabalho da rede de atendimento a criança e adolescente nas escolas está temporariamente suspenso, mas a delegada afirmou que as operações têm se intensificado para coibir esse crime, com a população adquirindo o papel fundamental de denunciar esta prática por meio do número 181 do disque denúncia. “Sabemos que a denúncia é algo difícil porque muitas das vezes envolve a estrutura familiar e a questão psicológica é muito afetada, mas a sociedade deve entender que não podemos normalizar isso. Daí a importância da prevenção e da denúncia. Por isso pedimos o apoio da população para que nos ajude a diminuir cada vez mais a violência contra crianças”, pontua.

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