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Cerâmica Marajoara: a alma de Icoaraci

Cabeludo e o Livro: Icoaraci e o MarajóSentado diante de sua roda, Rosemiro Pinheiro de Souza lembra os primeiros anos da década de 1960 no bairro do Paracuri, em Icoaraci. Foi nesta época que um amigo oleiro chegou a sua casa, lhe contando sobre um tipo

Cabeludo e o Livro: Icoaraci e o Marajó

Sentado diante de sua roda, Rosemiro Pinheiro de Souza lembra os primeiros anos da década de 1960 no bairro do Paracuri, em Icoaraci. Foi nesta época que um amigo oleiro chegou a sua casa, lhe contando sobre um tipo de cerâmica que tinha visto ao folhear um livro por acaso. Aquele momento entre os dois amigos foi o primeiro passo de uma jornada que fez deste distrito de Belém, distante cerca de 67 km da Ilha do Marajó, o principal santuário da arte em cerâmica marajoara no Brasil.

Com a saúde de quem trabalha todos os dias aos 82 anos, mestre Rosemiro lembra as palavras exatas de seu amigo Antônio Farias, conhecido por todos como Cabeludo. “Irmão, eu hoje lendo um livro descobri que aqui na nossa região do Marajó existe uma cerâmica mais bonita do que a que fazemos”, fala Rosemiro, reproduzindo as palavras do amigo naquele dia. A partir da descoberta de Cabeludo, os dois começaram a dedicar a vida a este estilo de cerâmica, criada por civilizações que viveram pelo Pará entre os séculos IV e XIV. Descobertas pelos pesquisadores Charles Frederick Hartt e Domingos Soares Ferreira Penna durante visita ao Marajó em 1871, a arte marajoara estava no centro das atenções de pesquisadores e antropólogos do mundo inteiro, e logo passou a ser apreciada e reproduzida pelos paraenses.

O fascínio de Cabeludo rapidamente contagiou Rosemiro. Aguçados pela curiosidade em uma época de difícil acesso a informação, os jovens de vinte e poucos anos passaram a pesquisar tudo o que podiam sobre cerâmica marajoara. Autodidata, a dupla aprendeu a copiar os objetos arqueológicos a partir da observação minuciosa das imagens nos livros e, mais tarde, a partir da década de 70, da ajuda de Raimundo Cardoso, considerado como o mestre que difundiu a cerâmica marajoara mundo afora. Mestre Cardoso teve contato com o estilo marajoara pela primeira vez durante uma visita ao Museu Emílio Goeldi. Mais tarde, quando se mudou para Icoaraci, Cardoso se uniu a Rosemiro e Cabeludo. “O Cardoso foi o primeiro a visitar museus e ver as cerâmicas marajoaras originais. Tinha dia que ele passava o dia no museu, observando e copiando cada detalhe das peças. Ele que criou um programa sério para levar essa arte pra outros cantos”, conta Rosemiro.

Clique aqui e conheça o Museu do Marajó, que contém parte do material do Museu Goeldi, maior acervo de arte marajoara do mundo, concentrando cerca de 2 mil peças originais dos artigos feitos pelos povos nativos da Ilha do Marajó.

Com a experiência adquirida ao longo do tempo, os três repassavam aos outros oleiros da comunidade tudo o que aprendiam. O objetivo era fazer com que as famílias do Paracuri, acostumadas a trabalhar com outros tipos de cerâmicas, passassem a trabalhar com o estilo regional. Deu certo. A geometria única, as representações de seres divinos, plantas e animais da Amazônia valorizavam as peças e aumentavam consideravelmente as vendas. Em pouco tempo tornou-se difícil encontrar alguém que trabalhasse com cerâmica de outro estilo no Paracuri. “Naquela época foi uma febre”, relembra o mestre.

Dez anos após a “descoberta” de Cabeludo, o Pólo de Cerâmica do Paracuri tornou-se a principal referência nacional na arte em cerâmica marajoara. Interessadas no ofício, várias pessoas de Belém e das cidades do interior deixavam suas casas para aprender com os três mestres do Paracuri. “Aqui comigo foram formados pelo menos 40 ceramistas, isso só do interior”, conta Rosemiro. Atualmente, as cerca de 80 famílias ceramistas que vivem na comunidade, trabalham diuturnamente para atender encomendas de todo o Brasil e de alguns países. São produzidas canecas, pratos, amuletos, vasos e urnas de todos os tamanhos. “Quando há encomenda grande, trabalhamos até de madrugada, hoje mesmo tenho que entregar 200 canecas para uma universidade”, revela seu Cristóvão, ceramista há mais de 20 anos e um dos aprendizes de mestre Rosemiro.

Icoaraci: A Alma Inquebrantável da Cerâmica

A viagem de Belém, sem trânsito, ronda 30 minutos pela avenida Augusto Montenegro ou pela Rodovia Arthur Bernardes. São apenas 17 quilômetros de trajeto, mas o suficiente para entrar num novo mundo. A mesma baía que banha os bairros das regiões mais nobres de Belém, em Icoaraci, banha periferias como Paracuri e Ponta Grossa ou ilhas como Cotijuba e Outeiro. O distrito, que completou 150 anos no dia 8 de outubro, é rico em material argiloso, encontrado principalmente na confluência entre os rios Guajará e Maguari.

A raiz da tradição ceramista em Icoaraci é anterior à descoberta do estilo marajoara. Remonta a meados do século XVII, quando o distrito era apenas um conjunto de enormes fazendas. Icoaraci, originalmente Icoaracy ou “Sol do Rio”, na tradução do Tupi, era uma propriedade concedida pelo Império Português à Ordem dos Frades Carmelitas Calçados. Há registros históricos de que estes sacerdotes da igreja Católica e seus sucessores mantinham olarias às margens dos igarapés formados a partir do rio Paracuri. Nesta época, os frades, juntos com os nativos, produziam tijolos para a construção de casas e itens utilitários para a sobrevivência no dia a dia.

O crescimento demográfico causado pela urbanização da capital paraense a partir do século XX transformou a vida em Icoaraci. Favorecidas pela herança ceramista deixada pelos padres, várias famílias viram na cerâmica marajoara a oportunidade para ter uma vida digna. A herança perdurou. A história da cerâmica tradicional do distrito cruzou-se mais tarde com a chegada dos traços marajoara. No Paracuri existem famílias cujo tradição na cerâmica dura mais de quatro gerações, ou seja, antes da influência vinda do Marajó. Seu Rosemiro recorda bem aquela época. “Eu lembro que aprendi o ofício com um vizinho perto de casa. Eu era adolescente e queria ter meu dinheiro, então pedi a meu pai que pedisse a este vizinho para me ensinar a ser ceramista. Foi assim que comecei, fazendo cerâmica lisa”, conta.

O trabalho dos três mestres deu frutos. Espalhadas nas calçadas e prateleiras ao longo da travessa Soledade, as cerâmicas dão a identidade do bairro. Em meio a vielas e becos de terra batida, onde carros e bicicletas transitam no mesmo espaço, as preciosas peças mostram imponência a quem passa. Os espaços de venda geralmente funcionam no mesmo local onde os oleiros trabalham e moram. As peças são produzidas e vão diretamente para venda. Além das encomendas, algumas famílias enviam suas produções para a Feira de Artesanato do Paracuri, na Orla de Icoaraci, onde ficam mais acessíveis aos turistas que chegam ao distrito. Outras vendem em frente às residências, ou até mesmo pela internet.

Ao cair da noite, seu Rosemiro se levanta. De bermuda e chinelo de dedo, o homem que foi um dos responsáveis por transformar a vida econômica e social de seu bairro, pede para fazer uma fotografia perto de sua árvore favorita, um pé de açaí enorme, que fica em seu ecoespaço, como ele gosta de chamar seu local de trabalho. “Essa árvore já viu muita coisa, olha só a beleza dela, como é linda, façam uma foto dela por favor”. O mestre de 82 anos trabalha todos os dias ali, ao redor da mata. Dali, viu seus dois amigos partirem, Cabeludo, em 2001, e Cardoso, em 2006. O frescor esperançoso sobre o futuro se mantém. “Isto nunca vai parar. Outros mestres continuarão o legado da cerâmica marajoara no Paracuri”, finaliza.

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