Fernanda Montenegro faz 90 anos no próximo dia 16 e, diz
ela, soma 70 de teatro. Mas na verdade subiu ao palco aos oito, quando ainda
morava no bairro do Campinho, subúrbio do Rio.
Na pequena igreja de São Sebastião havia "um
teatrinho", onde ensaiou e apresentou, ao lado de um primo, um dramalhão
então muito representado em "circo pavilhão" ou circo-teatro,
"Os Dois Sargentos".
Escreve que guardou "para sempre na lembrança a
sensação de levitar". Falando à reportagem, detalhou que "era uma
igrejinha pobrinha, que a família toda frequentava" e onde ela fez a
primeira comunhão.
"Na hora H é que a gente viu aquela luz pela primeira
vez, uma luz cor-de-rosa", conta. A iluminação separou a plateia do palco
"e, como lá era escuro e aqui era iluminado, eu senti que estava acima do
chão".
A autobiografia "Prólogo, Ato, Epílogo" é pontuada
por testemunhos assim, da primeira atriz do teatro brasileiro, também do
cinema, da TV e, antes, do rádio. Relata, por exemplo, que ao buscar uma vaga
no Radioteatro da Mocidade, aos 15, "já intuía que precisava de uma
profissão que deveria ser votiva", como um voto, uma entrega.
Foi na metade dos quase dez anos que passou no rádio, que
mudou de nome, da radioatriz Arlette Pinheiro para Fernanda Montenegro.
Fernanda "porque tinha um clima de romance do século 19". E
Montenegro foi tirado de "um médico de subúrbio que atendeu a família
anos, curando todos, segundo minha avó, milagrosamente".
Diz que a filha, a atriz Fernanda Torres, que amamentou
"nas coxias", ganhou o nome porque era preciso uma "Fernanda
verdadeira" na casa, como justificou o pai, o também ator Fernando Torres
–companheiro de Montenegro do rádio até sua morte, em 2008.
A atriz conta que foi a avó Maria Francisca Pinna, "a
grande companheira da minha infância", que a estimulou para o teatro,
indiretamente. "Eu tinha um faz de conta que era o mundo das histórias de
vovó. Todo dia. A gente só se aquietava quando ela sentava e contava. Também
muito cinema. Tudo era uma fuga daquela realidade tão simplória."
Sobre o ofício, mostra devoção pelos atores e atrizes que
viu nas revistas da praça Tiradentes, como Grande Otelo e Mesquitinha, e nos
teatros da Cinelândia, como Dulcina de Moraes e Bibi Ferreira. Também pelas
primeiras companhias amadoras, como o Teatro de Estudante, a cujo
"Hamlet" de 1948, com Sérgio Cardoso, ela assistiu 18 vezes.
"Quem viu, viu: arte do ator não se fixa. Nada fica", escreve.
A certa altura, comenta sobre si mesma: "Troquei de
pele durante 70 anos. Nunca tive meu próprio rosto nem postura". E cita um
verso de Cecília Meirelles: "Em que espelho ficou perdida a minha
face?".
Seus maiores mestres foram a atriz francesa Henriette
Morineau, com quem aprendeu a "disciplina absoluta", e o diretor
italiano Gianni Ratto, que a introduziu à construção das personagens como uma
"busca infindável", de Sísifo.
O livro narra passagens como o protagonismo alcançado a
partir de "A Moratória", dirigida por Ratto, peça que "mudou o
curso da minha vida", e os primeiros aplausos em cena aberta com "O
Mambembe", também direção de Ratto.
Não faltam momentos difíceis, inclusive no teatro, como
ouvir de um dos líderes do Arena que ela era bem-vinda na companhia, mas os
seus colegas homossexuais, não. Ou os anos de dívidas acumuladas junto ao Banco
Nacional para produzir suas peças.
O livro termina com o registro satisfeito de que, aos quase
90, "ainda dou conta do meu ofício", em "Nelson Rodrigues por
Ele Mesmo", solo que traz a São Paulo no ano que vem. "Tudo vai se
harmonizando para a despedida inevitável", escreve ela, no último
parágrafo. "Mas, acordo e canto."
No livro, Fernanda Montenegro não aborda política hoje. Mas
discorre sobre a importância das leis trabalhistas de Getúlio Vargas para a sua
família, no subúrbio, ou então sobre a campanha das Diretas Já, de que
participou desde o primeiro ato, no dia 12 de janeiro de 1984, em Curitiba.
Recorda também sua reação pública às decisões do presidente
Fernando Collor, como fechar o Ministério da Cultura. "Sempre sobra
cobrança sórdida, hostil, sobre os atores", escreve na autobiografia.
Questionada se vê o mesmo acontecer, uma geração depois, com
Jair Bolsonaro, ela desabafa: "Agora é pior. Antes era só político, agora
é também moral, por razões de comportamento. 'Teatro é o espaço do demônio!' É
isso".
Antes, a cultura das artes era dada como "inútil",
o "imaginário criativo" era perda de tempo diante de "tanta
carência do país". Agora a arte se tornou "pecaminosa, há uma
moralidade que acaba em cima de quem? Do 'instrumento do demônio', que é o
ator, o que aceita ser o outro".
Explica: "Somos perigosos porque nos aceitamos
diversos. Nossa característica é sermos abertos a tudo, o melhor do humano e o
pior do humano. Isso não é tolerado. Ainda mais na condição de atriz".
E agora o que se enfrenta é "o ponto de vista de uma
religião, seita, que tem lá seus princípios. Isso está no poder".
O diretor Gianni Ratto escreveu há duas décadas que Fernanda
era um fenômeno isolado no teatro, pela "noção crítica que tem de seu
trabalho, na perspectiva histórica de suas origens e do mundo". Ela
"carrega o esplendor do arcanjo da espada flamejante".
Como se acompanha ao longo da autobiografia, a atriz recebeu
a espada de Cacilda Becker, que foi o "arcanjo" do teatro até o final
do anos 1960.
O livro revela como Cacilda, "nossa líder
absoluta", a procurou em 1968 para irem juntas até a casa do comandante da
2ª Região Militar, em São Paulo. Pediram pelo abrandamento das prisões e da
censura, num encontro que se mostrou "tão inútil diante da nossa tão
grande esperança".
Nos anos seguintes, ela e o marido, o ator e produtor
Fernando Torres, enfrentariam episódios como a prisão de Maurício Segall,
marido de Beatriz, com quem estavam para estrear uma nova peça, e a censura de
vários espetáculos, como "Calabar", de Chico Buarque, e até
"Volta ao Lar", do inglês Harold Pinter.
Com a redemocratização, a atriz chegou a ser chamada para
ministra da Cultura e foi quem acabou viabilizando o nome de Celso Furtado para
o cargo, no governo José Sarney. Sua referência persistente é a Constituição de
1988, que credita a Ulysses Guimarães.
Instada a sugerir uma resposta ao quadro de crescente crise
institucional no país, ela responde de bate-pronto que é preciso retornar à
Constituição de Ulysses e acabar com a reeleição, que "provocou um
distúrbio" na democracia.
Principais trabalhos
No teatro:
'Loucuras do Imperador'
1952
'A Moratória'
1955
'O Mambembe'
1959
'O Beijo no Asfalto'
1961
'Fedra'
1986
'Dias Felizes'
1995
'Viver sem Tempos Mortos'
2009
No cinema:
'A Falecida'
1965
'Eles não Usam Black-tie'
1981
'Central do Brasil'
1998
Na televisão:
'A Morta sem Espelho'
1963
'Guerra dos Sexos'
1983-84
'O Outro Lado do Paraíso'
2017-18
LIVRO
Prólogo, Ato, Epílogo
Fernanda Montenegro, com a colaboração de Marta Góes.
Companhia das Letras. R$ 49,90 (392 págs.)
Seja sempre o primeiro a ficar bem informado, entre no nosso canal de notícias no WhatsApp e Telegram. Para mais informações sobre os canais do WhatsApp e seguir outros canais do DOL. Acesse: dol.com.br/n/828815.
Comentar