Gênero musical que dá voz às minorias e transforma em poesia a dura realidade política e social da periferia, o rap é internacionalmente aclamado como um segmento artístico com linguagem própria, linguagem essa muitas vezes ferina, direta, ácida. Corta para Belém, e a capital paraense tem marcado seu espaço no cenário do rap nacional, com nomes consolidados no meio - e fora dele -, como Everton MC, Pelé do Manifesto, Bruno B.O, Cronixta, Slam Dandaras do Norte e tantos outros. Mas parece que a Fundação Cultural do Município de Belém - Fumbel, órgão municipal que deveria acolher toda a arte produzida na capital paraense, não reconhece isso.
“A Voz do Gueto”, música fruto da parceria entre Everton MC e Pelé do Manifesto, foi desclassificada do edital para o festival “Embalando a Arte na Rede”, promovido pela Fumbel, por suposta apologia à violência. Tudo porque a letra falava do assassinato de um amigo da dupla. O objetivo do festival era gerar renda para artistas e produtores culturais durante o período de isolamento social por conta da pandemia da Covid-19. O festival, realizado virtualmente com postagens de vídeos dos selecionados, previa remunerar 150 performances individuais no valor de R$ 1.250,00; 50 duplas - caso em que se enquadrava Pelé e Everton MC - com cada uma recebendo R$ 2.500,00; e até 50 trios, com prêmios no valor de R$ 3.750,00.
A dupla inscreveu duas músicas no edital - “A Voz do Gueto” e “Mais um Dia na Periferia”, uma guitarrada com rap. “Na música ‘A Voz do Gueto’ a gente conta o assassinato de um amigo nosso. A gente entrou no estúdio para gravar a música e recebemos a notícia que ele tinha sido assassinado na frente da casa dele, no bairro do Jurunas. Isso abalou muito a gente, porque ele não era só um amigo, era um apoiador nosso, acreditava demais no nosso trabalho, mais até que a gente mesmo”, justifica Pelé do Manifesto.
Quando a dupla iniciou as gravações do álbum “Preto e Branco”, a canção estava sem refrão e, depois do assassinato, ganhou versos como “meus manos estão morrendo, muitos não puderam ver, o trampo do gueto crescendo, a voz do rap florescendo”. Os artistas ficaram sabendo da censura da canção ao receber o e-mail da Fumbel, informando que eles não tinham sido aprovados no edital, sob alegação de não se enquadrar no quesito de não fazer apologia à violência.Eles refutam a acusação.
Músicos dizem que houve ataque à livre expressão artística
Pelé do Manifesto e Everton MC dizem que “A Voz do Gueto” faz, como tantas outras músicas no rap, um retrato da realidade na periferia. “A gente está fazendo uma denúncia. Faço uma crônica e essa música aborda vários temas, como violência e dificuldades de quem vem da periferia”, conta Pelé do Manifesto, que ficou surpreso com a decisão e entrou na Justiça para tentar revertê-la.
“Eu nunca imaginei que a gente poderia ser censurado por causa disso, é uma coisa muito complicada. Se o vídeo fizesse apologia à violência, o YouTube teria derrubado e a música não estaria sendo usada nas escolas por professores. Ficamos tristes porque isso mostra um pouco da visão que eles [agentes públicos] têm sobre o rap”, critica.
A ação foi ajuizada no dia 23 junho, no 1º Juizado Especial da Fazenda Pública de Belém, com base no fundamento jurídico de que a decisão da Comissão de Seleção “não especifica o que seria(m) a(s) frases e expressões de dúbia interpretação, sugerindo e fazendo apologia à violência”. “Pela lei, todo ato administrativo precisa de fundamentação. No caso específico, a decisão da Comissão faz apenas uma acusação genérica. Além disto, suscitamos na ação que a decisão (não fundamentada) da Comissão de Avaliação é ataque à livre manifestação de pensamento e à livre expressão da atividade artística dos autores”, diz Hugo Mercês, advogado dos artistas.
No processo, o advogado faz os seguintes pedidos: a inclusão dos autores no festival virtual promovido pela Prefeitura de Belém, considerando que eles preenchem todos os requisitos legais para habilitação no edital; retratação pública pela acusação de apologia à violência;e indenização por danos morais aos autores.
“O rap ainda hoje enfrenta muito preconceito, essa é a prova. Peço que a galera ouça rap com carinho, porque a gente tem muita coisa para mostrar, e que ouça o disco ‘Preto e Branco’ no YouTube e tire suas próprias conclusões”, convoca Pelé.
RESPOSTA
Em nota, a Fumbel informa que “no ato da inscrição os termos para credenciamento foram divulgados para conhecimento e concordância dos artistas inscritos”, sem ainda assim explicar por que a música foi enquadrada como de apologia à violência. O órgão ressalta “que a comissão de avaliação e seleção, responsável por esclarecer todas as dúvidas e pendências sobre o processo de seleção, não foi procurada no e-mail institucional, que foi disponibilizado no edital, e que não houve solicitação formal do artista à Fundação paraque o caso fosse revisto”.
A Fumbel reforça ainda “que não se opôs à revisão de nenhum dos projetos apresentados, apesar de respeitar e ter como soberana a posição de seus julgadores, e que trabalha com o propósito de fomentar, disseminar e valorizar todas as atividades, manifestações e expressões culturais ou patrimonial do município de Belém”, o que significaria, então, respeitar as especificidades da poética narrativa do rap. O que na prática parece que de fato não ocorreu neste caso.
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