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Consciência Negra: uma viagem aos cantos e à musicalidade das religiões de matriz africana

“Sem música não tem candomblé. Ela é um chamamento do sagrado, para que ele chegue até aqui e use a corporeidade nossa para se expressar”, diz Mametu Nangetu, Mãe Nalva de Oxum. Ela é representante e autoridade religiosa do Mansu Nangetu, um terreiro que

Imagem ilustrativa da notícia Consciência Negra: uma viagem aos cantos e à musicalidade das religiões de matriz africana camera Olga Leiria/Diário do Pará

“Sem música não tem candomblé. Ela é um chamamento do sagrado, para que ele chegue até aqui e use a corporeidade nossa para se expressar”, diz Mametu Nangetu, Mãe Nalva de Oxum. Ela é representante e autoridade religiosa do Mansu Nangetu, um terreiro que preserva as tradições de origem Bantu, em Belém. Nele funciona ainda o Instituto Nangetu, uma associação sem fins lucrativos, que atua na valorização das culturas tradicionais negras e no desenvolvimento de projetos artísticos com identidade cultural afro-amazônica.

Ela diz que o que há de mais bonito nas cantigas que fazem parte dos rituais afro-religiosos é a própria fé envolvida. “Eu escuto uma Àdúrà (uma reza), um Oríkì, e eu sei o que está dizendo; é sempre uma palavra de esperança, de fé, de persistência”. Nas tradições africanas, rezar, dançar, cantar e tocar não são atos separados. “Tanto que alguns autores falam que a gente acredita em deuses que dançam”, diz Tata Kalepensi (Vítor Gonçalves).

Cada música tem seu momento para ser cantada e está ligada a um inquice (orixá), no Candomblé Angola. Por exemplo, a inquice Dandalunda (associada aos orixás Iemanjá e Oxum), tem uma cantiga específica para o ato que representa o seu banho. Nas tradições africanas, a musicalidade, assim como a corporeidade, é uma forma de comunicação.

O Instituto Nangetu tem um projeto de capoeira angola chamado Zimba, e as cantigas de capoeira são um exemplo dessa comunicação. Até mesmo os toques do berimbau, como o “toque de cavalaria”, bem acelerado, criado para avisar que havia policiais ou capitães do mato chegando, era uma forma de comunicação entre os capoeiristas.

Assim, no Candomblé. “Tem cantiga para iniciar, para tocar para santo, cantiga que só dança Ogam, elas são muitos específicas e trazem com elas vários símbolos”, diz Tata Kalepensi. “Tem muito neófito que usa nossos cantos sagrados, utilizam esse pertencimento das tradições, para levar até para trio elétrico, infelizmente. E a gente fica muito ofendido porque está mexendo com o nosso sagrado”, também comenta Mametu Nangetu.

LÍNGUA

Como trata-se de uma casa de Candomblé Angola, o dialeto das suas cantigas, em grande parte, é quimbundo, vindo dos povos bantu, que hoje, em África, formam os países do Congo e Angola. Por causa da colonização portuguesa sofrida por eles, o dialeto é um pouco próximo da língua portuguesa. Há várias palavras que usamos hoje e têm origem no quimbundo, como “bunda” e “moleque”.

E mesmo o Candomblé sendo uma tradição criada no Brasil, seus filhos saúdam à natureza e à ancestralidade de povos africanos, então saúdam na língua deles. “Claro que tem algumas cantigas em português, principalmente em atos que são muito sincréticos; com algo relacionado, por exemplo, ao samba de caboclo, que é o encontro entre a tradição africana e dos índios”, explica Tata Kalepensi.

TRANSMISSÃO

O candomblé é uma tradição oral, não tem muitos escritos, como ocorre com o segmento cristão, que tem a Bíblia como cânone; ou o islamismo, que tem o Alcorão. A transmissão ocorre na vivência e no ensinamento dos mais velhos, considerados a fonte de todo o conhecimento. “Todo dia se aprende algo no espaço sagrado. Nós não sabemos tudo do Candomblé, mas eu tenho meu pai, que sempre foi meu mestre. E tive o mestre Ivanildo, que foi assassinado, e sempre nos ensinou muito, a rezar, cantar, dançar”, diz Mametu Nangetu.

Música feito uma prece

Anderson Pereira*

A música faz parte das religiões afro-brasileiras desde a sua origem e, infelizmente, no Brasil, por desinformação, preconceitos ou difusão de informações estereotipadas, muita gente associa as manifestações afro-religiosas como o Candomblé, a Umbanda e, mais forte na nossa região, a Mina, com bruxaria ou como oportunistas que prometem milagres em troca de dinheiro. Ou ainda confundem a cultura negra com superstição ou ideias maléficas. No entanto, esta religião conectada ao universo africano é fruto de uma forte ancestralidade que a qualifica como um conjunto de ideias, mitos, música, dança, roupas e oferendas que existem desde os primórdios da humanidade, merecendo reconhecimento e respeito por sua história e tradição.

Na realidade, as religiões afro-brasileiras são uma série de cultos e rituais provenientes de diferentes regiões da África, que se reuniram na América (Haiti, Cuba, EUA, Brasil) como algo único, fruto do isolamento provocado pela processo de escravidão. As influências dessa manifestação no Brasil, no entanto, vão além do domínio religioso e social, atingindo uma das mais fortes tradições culturais brasileiras: a música.

A música nas religiões afro-brasileiras pode ser apreciada como um meio para se relacionar com as divindades. Sendo considerada uma linguagem privilegiada no diálogo dos Orixás, entidades e caboclos, em que o toque pode ser entendido como um chamado ou uma prece. Não se trata de um entretenimento ou expressão estética, mas um fenômeno que vincula o músico (chamado de Ogã) com o mundo transcendente.

As cerimônias, sempre animadas, prezam por uma minuciosa formação instrumental que é composta por uma série de instrumentos: o agogô (de uma boca ou duas) chamado Gã; o Xequerê, chamado de Abê; e três atabaques de diferentes tamanhos. Os músicos no Candomblé, por exemplo, recebem o nome de Ogã; o músico mais experiente, chamado de Ogã Alabê, toca o Run, o tambor maior, que é o tambor solista que comanda todo o grupo musical; e mais dois Ogãs, que tocam o rumpi e o lê, dois tambores menores.

Ao contrário do que temos na cultura ocidental, onde os sons graves não ficam na frente, nas manifestações afro-religiosas os sons graves assumem o papel de protagonista. As frases tocadas pelo Run (tambor solista) não são improvisos, mas estão em consonância com os movimentos do Orixá que recebem as pessoas. Assim, com seus ritmos característicos, cada Orixá expressa suas particularidades, seja na linguagem musical quanto na gestual, as danças das entidades.

REVERBERAÇÃO NA MPB

A música brasileira recebeu fortes vibrações, diretas e indiretas, da música afro-brasileira, que influenciou desde grupos musicais contemporâneos até manifestações culturais tradicionais que articulam música e dança. No Nordeste, por exemplo, a maioria dos que participam dos grupos musicais como os brincantes de Maracatu e Cavalo Marinho, estilos afro-brasileiros, praticam o Candomblé. O mesmo acontece com membros de grupos de Jongo, Folia de Rei, Bumba Meu Boi, ritmos africanos e, no Pará, esses tambores e sons se conectam com a cultura indígena e cabocla dando um ritmo muito especial e particular para a musicalidade paraense.

Uma das grandes homenagens prestadas à musicalidade afro-brasileira por membros da Música Popular Brasileira, a MPB, é o disco “Afro-Sambas”, fruto de uma parceria entre o violonista Baden Powell e o poeta Vinicius de Moraes, músico que sempre se apresentou como “o branco mais preto do Brasil”. O álbum, sucesso de crítica, condensou em canções como “Canto de Ossanha” e “Lamento de Exú”, todos os principais elementos do Candomblé. Clara Nunes, Pixinguinha, Dorival Caymmi e Maria Bethânia são outros bambas da música que cantaram os ritmos da religião.

Seja na música ou no culto aos Orixás, a religião afro-brasileira se caracteriza pela complexidade, entre os inúmeros ritmos que fazem parte deste universo. Nesse contexto, vale destacar ainda o ritmo Alujá, não incorporado à música popular brasileira, mas que com seu swing provoca todo um movimento interpretativo na dicção das semicolcheias, base de todos os ritmos brasileiros e cubanos, que quando interpretadas com este outro sentimento provocam uma espécie de superposição, que permite uma pronúncia muito mais swingada.

RIQUEZA NA DIVERSIDADE

A riqueza das manifestações afro-religiosas repousa na variedade das suas fontes. Na realidade, é uma junção de culturas vindas de várias partes da África, também nas suas manifestações ocorridas na América, nas culturas brasileira e cubana, por exemplo, e na multiplicidade das suas formações instrumentais, que formam um verdadeiro arsenal tímbrico e musical, que nos prova a riqueza deste imenso tesouro.

Para manter viva essa identidade cultural do Brasil é preciso aumentar o incentivo ao estudo e valorização da tradição, os equiparando a quaisquer outros movimentos históricos ensinados e difundidos nas escolas e universidades brasileiras. Por isso, fazer presente essas discussões, não só no Dia da Consciência Negra, é uma questão de respeito, resistência, e de manter viva uma história que sempre foi colocada na marginalidade. E como podemos ouvir, a musicalidade negra está enraizada em nossa cultura muito mais do que imaginamos.

*Anderson Pereira é antropólogo, doutorando e membro do Laboratório de Antropologia Simétrica (Nansi) do Programa de Pós-graduação do Museu Nacional (UFRJ), membro colaborador do Núcleo de Pesquisa e Extensão das Expressões Afro-religiosas do Oeste do Pará e Caribe (NPDAFRO/Ufopa).

“Às vezes, estamos tocando aqui [no Nangetu] e chega a polícia, por causa de denúncia de vizinho. Na ocorrência fica registrado como ‘briga de vizinho’, não como racismo ou intolerância religiosa”.

Tata Kalepensi, músico do Ita Lemi Sinavoru e membro do terreiro Nangetu

Quebrando tabus, mas ainda com muito a avançar

Lais Azevedo

Ita Lemi Sinavuru significa “pedra forte de felicidade” e dá nome ao bloco de música afro nascido dentro da casa de candomblé Nangetu, 19 anos atrás. Uma das guardiãs da Casa, Negrita, é a madrinha deles. “É um grupo fundado dentro de um terreiro e tem uma entidade como madrinha, então, acho que isso já diz muita coisa”, comenta Tata Kalepensi, parte de uma nova leva de músicos que hoje integra o bloco. Um dos idealizadores e cantor do Afoxé é o babalorixá Edson Barbosa, pai Catendê de Oxóssi. Na verdade, dos nove músicos que compõem o bloco, oito são de terreiro.

“A gente procura trazer toda a musicalidade dos terreiros para as composições. Desde o samba (conhecido como cabula), o congo; como outros toques de terreiros, como barra vento, arrebate e o afoxé (ijexá), que dá nome ao grupo”, diz o músico. O que fundamenta a existência do grupo é o combate ao racismo, a valorização da diversidade e, acima de tudo, a diversidade musical.

“Tudo o que forma a cultura popular brasileira vai dar em África, tem raízes lá, e posso citar diversos exemplos: carimbó, maracatu, jongo, tambor de crioula, lundu, cavalo marinho, samba. Mesmo assim, a cultura africana, a musicalidade, ainda é muito discriminada. Eu já vivenciei policial ou guarda municipal chegando com abordagem violenta, querendo levar o tambor. Você não vê ninguém chegando numa ópera querendo levar violino”.

Com isso, o músico considera que ainda existe um grande tabu em torno da musicalidade afro; e, especialmente, com a presença do tambor. Na cena local, ele acredita que os últimos anos foram de maior difusão dessa música, graças ao acesso facilitado pela internet. “Você pode encontrar várias músicas de terreiro, independente da tradição ser Candomblé, Umbanda, Mina… Ter acesso a coisas que antes não tinham”.

No Pará, especialmente, ele considera um marco o registro do carimbó como Patrimônio Cultural Brasileiro, em 2014. “Com a repercussão, e uma instituição reconhecendo sua legitimidade - não que a gente precise disso para existir, estamos aí há séculos -, muitos grupos de carimbó surgiram. E antes, era só o Espaço Cultural Coisas de Negro (em Icoaraci) que fazia roda de carimbó; enquanto hoje já vemos espaços no centro da cidade”.

O Espaço Cultural Apoena, por exemplo, surgiu logo após o registro. “É natural que surjam novos grupos, trazendo uma cena de turismo, de renda. Mas, ao mesmo tempo, são iniciativas privadas, de pessoas que estão trabalhando pelo fomento da cultura”, aponta.

E mesmo dentro dos terreiros, a manifestação dessa musicalidade não está resguardada. “Às vezes, estamos tocando aqui [no Nangetu] e chega a polícia, por causa de denúncia de vizinho. Na ocorrência fica registrado como ‘briga de vizinho’, não como racismo ou intolerância religiosa. Então, por mais que tenhamos avanços, ainda passamos por certas situações diariamente”, lamenta.

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