Na Terra da Gastronomia, um livro que une Belém a Portugal

Belém tem o status de Cidade Criativa da Gastronomia desde 2015, quando a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) reconheceu essa vocação da capital para a boa mesa. Mas os tesouros culinários guardados na Cidade das Mangueiras são bem mais antigos e não se resumem apenas aos pratos propriamente ditos. O melhor exemplo disso é uma feliz coincidência ocorrida em 2015, na biblioteca Fran Paxeco, de propriedade do Grêmio Literário e Recreativo Português, de 152 anos.

• No Pará, culinária indígena é objeto de reflexão
• A cozinha paraense é de todos e está presente em qualquer lugar do mundo

Foi nesse espaço literário com quase 40 mil obras, grande parte delas rara, que a especialista em preservação do patrimônio histórico, Ethel Soares, viu um pé de vento abrir uma estante de livros e, ao fechar, se deparou com um pequeno exemplar de A Arte de Cosinha, de João da Matta. O autor foi um chef português dono de um restaurante frequentado pela família real lusitana, a qual conhecia todos os gostos gastronômicos e que estão presentes na publicação.

“Como eu gosto de cozinhar, tirei para ler. O livro tem dez jantares de primeira ordem, que são jantares completos com quatro entradas, oito pratos principais e cinco sobremesas que eram oferecidos pela nobreza nos palácios em comemorações”, destaca Ethel Soares. “Esse exemplar é de 1876, é a primeira edição e o único que se tem notícia da existência em todo mundo”, explica.

O pudim de pão à brasileira é uma das receitas que voltaram a ser feitas (Foto: Divulgação)

Pato com arroz também foi reproduzido para um jantar especial no ano passado (Foto: Divulgação)

A “redescoberta” do exemplar raro foi bastante comemorada por chefs e amantes da boa mesa, do mundo todo. Para angariar recursos para manutenção da biblioteca e disseminar as receitas antigas e históricas, o A Arte de Cosinha foi reimpresso em uma edição fac-similada com tiragem limitada. “Na época do lançamento veio a Belém o secretário das Comunidades Portuguesas do Mundo, José Luis Carneiro. Ele ficou encantado. O livro foi lançado na Embaixada de Portugal em Brasília. Tem sido feito jantares de lançamento em todo o Brasil”, conta Ethel orgulhosa.

Segundo a especialista, algumas receitas passaram a integrar o cardápio dos restaurantes A Bela Sintra e Cantinho Português, em São Paulo. Ethel também já se aventurou a reproduzir algumas receitas. “As minhas favoritas são as compotas, tem os gelados, como chamavam os sorvetes, mas tem um creme de chocolate que vai derretendo na boca. Parece que o cozinheiro está ao nosso lado contando a história das comidas”, relata. “Também tem a parte de servir a mesa, é muito interessante”.

COISA DO DESTINO

Questionada sobre a coincidência da obra ser encontrada em Belém, Ethel acredita em coisa do destino. “A comida portuguesa é muito presente em nossa gastronomia. Eu acho que foi um presente de ver o quanto a gente deixa de ter conhecimento por não ler um livro”, analisa.

BOA MESA

As chefs Wânia e Tathiana Martins reproduziram alguns pratos do livro com elementos contemporâneos (Foto: Divulgação)

Em Belém, um grupo de cerca de 150 pessoas teve o privilégio de experimentar alguns dos pratos de João da Matta reporduzidos pelas chefs Tathiana e Vânia Martins, do Buffet Pomme D’Or. O jantar especial foi para comemorar os 118 anos do Instituto Histórico e Geográfico do Pará no ano passado. No cardápio, pernil de porco assado com arroz de substância, pato com arroz ao molho de azeitonas, filé de filhote e, de sobremesa, pudim de leite e creme de chocolate.

A repercussão foi excelente, minha mãe foi aplaudida por todos”, destaca Tathiana. “Agora demos um gostinho atual. O pato já é paraense, a gente usou a chicória como tempero original no lugar da salsinha, que dá um sabor bem acentuado regional, mas sem mudar a receita original”, observa.

A mistura da culinária portuguesa com elementos da cozinha paraense exemplificada na fala de Tathiana, mostra a riqueza de Belém nesse quesito. “Eu acho maravilhoso, na verdade a capital do Pará é a cidade mais próxima de Portugal. Se a gente for comparar com a cultura, com a Cidade Velha, a nossa culinária está muito perto de lá. Eu tenho cursos fora, na França, em Portugal. Não tem como comparar essa proximidade. A gente acaba tendo um reconhecimento disso, que o Pará é completamente diferente nos nossos insumos”.

PARA LER - A ARTE DE COSINHA

- Autor: João da Matta
- Pontos de venda: sede social do Grêmio Português – rua Senador Manoel Barata, 483, Comércio. Sede campestre do Grêmio Português – Rod. Augusto Montenegro, S/N, tenoné (somente aos domingos)
- Telefones: 3223-0594/98211-3377

RECEITA DO LIVRO

Gelado de Tangerina*

- Espremei doze ou quinze tangerinas bem maduras e sumarentas, e esmagai no mesmo sumo as cascas, para que d’ellas sáia a parte odorífera: passai depois por um saco de flanella, para que fique claro, e fazei o seguinte:
- Derretei vinte cinco grammas de gelatina (vende-se em todas as tendas) em menos de um quartilho de agua, juntando-lhe também uma clara de ovo e 400 grammas de assucar; logo que levante fervura batei-a com umas varas sem cessar deitando-lhe a pouco e pouco meio quartilho d’agua fria.
- Tirai-a então do lume e passai esta geleia por um saco de flanella até ficar bem clara; estando assim, enchei as fôrmas que quizerdes, e levai-a ao gelo, se for verão: no inverno não precisa.

(*transcrito como na linguagem presente no livro A Arte de Cosinha)

(Luiz Octávio Lucas/Diário do Pará)