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CINEMA

Ghost in the Shell: o mangá, o anime o jeito de ser nipônico

É uma das minhas primeiras lembranças — e ela começa e termina com um estereótipo étnico. A tinturaria do meu tio funcionava em sua casa, um local repleto de coisas fascinantes para um pirralho de imaginação fértil feito eu: tábuas sobre as quais repousav

É uma das minhas primeiras lembranças — e ela começa e termina com um estereótipo étnico.

A tinturaria do meu tio funcionava em sua casa, um local repleto de coisas fascinantes para um pirralho de imaginação fértil feito eu: tábuas sobre as quais repousavam grandes ferros de passar com aparência robótica; tanques cheios de uma solução de água e algum produto químico misterioso e possivelmente letal; dezenas de cabides com roupas que, vistas de relance, lembravam uma apavorante fila de corpos suspensos. O que mais me atraía, no entanto, era a centrífuga industrial. Com quase o dobro da minha altura, o reluzente cilindro metálico tinha, naquele domingo em particular, se tornado minha nave espacial. Mas, antes que eu pudesse completar a missão, fui ejetado — ou melhor, arrancado de dentro do aparelho pelo braço e obrigado a me sentar, quietinho, na sala, onde minha avó acompanhava na tevê um programa de auditório chamado Imagens do Japão, que, em grande parte, reproduzia conteúdo japonês no idioma original.

Em muitos outros domingos, acabei do mesmo modo: emburrado no sofá do meu tio, sem outra alternativa a não ser tentar encontrar algum sentido naquele desfile de atrações desconhecidas cantando e falando em uma língua incompreensível. Às vezes, era bem fácil decifrar o que se passava na telinha — nem precisava das reações da batchan para identificar a atuação caricata dos humoristas ou a dramaticidade das músicas cheias de melancolia. Todo o resto, porém, soava como uma sequência de interjeições, onomatopeias e vogais prolongadas (embora na época, é claro, eu desconhecesse esses termos) executadas sempre no mesmo tom e na mesma cadência. Apenas algumas sutis variações de entonação diferenciavam um discurso do outro.

Anos mais tarde, durante minha tentativa (frustrada) de aprender o idioma dos meus antepassados, passei a brincar com o fato de que as partículas gramaticais que indicam se a oração é uma afirmação, interrogação ou negação só aparecem no final do período — eu dizia que é por isso que você jamais verá um japonês interrompendo o outro. Um exagero, claro. Mas a piada ilustrava a percepção que eu tinha de que existe uma espécie de jeito de ser nipônico, que se reflete na maneira como eles se expressam. E o mangá se encaixa nessa ideia.

Coisa de japonês

01 Astro Boy

Embora existam exemplos de arte sequencial japonesa datados do século 13, foi após a Segunda Guerra Mundial, com a introdução dos quadrinhos ocidentais no país durante a ocupação aliada, que o mangá começou a se tornar o que conhecemos hoje. É desse período, por exemplo, o clássico de Osamu Tezuka, Tetsuwan Atomu (conhecido nos Estados Unidos como Astro Boy e, por aqui, ao menos para quem foi jovem nos anos 1980, como O Menino Biônico), que ajudou a solidificar a ficção científica como um dos gêneros mais populares das HQs japonesas.

Esse, aliás, é um dos seus principais diferenciais — enquanto os comics norte-americanos são dominados pelos super-heróis e majoritariamente direcionados a crianças e jovens, o mangá explora temas como ação, comédia, romance adolescente, terror, sobrenatural e erotismo, entre tantos outros. Seu público abrange praticamente todas as faixas etárias, tornando essa indústria responsável por uma gorda fatia da economia japonesa. Consequentemente, seus artistas mais conhecidos gozam de prestígio similar ao de ídolos da música ou da TV.

Nesse cenário, Masamune Shirow é um ponto fora da curva.

02 Shirow

Embora ele seja o autor de uma obra aclamada internacionalmente, que é apontada como ícone do cyberpunk e ponto de partida de uma franquia que se expande por diversas mídias, você não encontrará seu retrato na internet. Avesso a aparições públicas e ao status de celebridade, Shirow mora em sua cidade natal, Kobe — ou seja, fora do epicentro do mercado, em Tóquio —, e trabalha sozinho, sem assistentes, em um ritmo bem mais lento do que o ditado pela indústria de produção em massa.

Assim como seu criador, Ghost In The Shell também foge do padrão dos mangás. À primeira vista, a premissa soa comum: em um futuro distópico, a organização governamental Setor 9 combate ameaças ciberterroristas — algo vital, já que, graças aos avanços tecnológicos, a maioria da população possui cérebros cibernéticos que podem ser hackeados. A tropa de elite desse grupo, formada por ex-militares e policiais, é comandada por Motoko Kusanagi, mais conhecida como Major. Diferentemente de seus colegas, que contam com próteses biônicas de apenas alguns órgãos, a Major teve seu corpo inteiro substituído por uma versão robótica — uma parte de seu cérebro é tudo o que lhe resta de fisiologicamente humano.

“Não sei por quê, mas parece que os primeiros heróis com os quais os japoneses se identificam em mangás e animes são os robôs”, afirma Shirow em uma rara entrevista, concedida ao tradutor e escritor norte-americano Frederik L. Schodt. “As pessoas aqui não parecem se sentir tensas por causa da ciência e da tecnologia”, ele completa, destacando outra instância em que o olhar nipônico se diferencia. Se por um lado o inconsciente coletivo ocidental teme a tecnologia e enxerga um inevitável conflito entre homem e máquina — vide as incontáveis obras com essa temática na literatura e no cinema —, por outro, no imaginário japonês, o conflito está mais ligado às consequências da tecnologia. Se homem e máquina estão cada vez mais próximos, qual é a fronteira que os separa?

Filosofia em quadrinhos

03 capa do mangá

Em Ghost In The Shell, essa questão é abordada na trama principal, envolvendo a Major e o poderoso ciberterrorista Mestre dos Fantoches, e também na subtrama do frustrado levante dos fuchikoma — tanques-robôs dotados de inteligência artificial. O próprio título revela a influência filosófica da obra — trata-se de uma referência à frase “the ghost in the machine”, enunciada pelo filósofo britânico Gylbert Ryle como crítica ao conceito cartesiano que considera mente e corpo como duas entidades separadas. A densidade de conteúdo do mangá de Shirow fica ainda mais evidente nas dezenas de notas de rodapé em que o autor não somente opina sobre tais discussões como disserta sobre política, equipamentos militares e, hã, a cópula das lesmas (?!).

Dito isto, é preciso observar que, embora se dedique a temas profundos, Ghost In The Shell está longe de ser sisudo — pelo contrário, é permeado de momentos de leveza, ressaltados pelo traço extremamente detalhista de Shirow. Após sequências de ação desenfreada, que beiram o cinematográfico, não é raro o autor incluir um momento cômico, com direito àquelas expressões e poses caricatas, típicas dos shonen manga, os quadrinhos infantojuvenis. Ao mesmo tempo, o autor se vale de um erotismo igualmente exagerado, evidenciado pelos enormes painéis dedicados às personagens femininas, sempre curvilíneas e retratadas com trajes fetichistas (ou sem qualquer traje). O principal objeto dessa abordagem, é claro, é a protagonista Major — em pleno tiroteio, por exemplo, ela tem o casaco retalhado por projéteis, revelando sua cinta-liga com meias rendadas.

Versão animada e dark

05 capa do anime

Publicado originalmente entre 1989 e 1990, Ghost In The Shell teve tamanho impacto que não tardou para ganhar uma versão em anime de longa-metragem. Coprodução de Japão e Reino Unido, ela é, em muitos aspectos, bem diferente do material original. Não é surpresa que o roteirista Kazunori Ito e o diretor Mamoru Oshii  tenham optado por deixar de fora a maioria das subtramas e se concentrar na perseguição ao Mestre dos Fantoches — seria impossível fazer uma adaptação totalmente fiel em apenas um filme. O que chama a atenção é a mudança de tom.

Sem o senso de humor do mangá, o anime é muito mais sombrio e, de certo modo, pessimista. O apelo erótico — que aqui se resume ao figurino (ou à falta de um) da Major — é frio e um tanto deslocado. Aliás, a própria personagem parece outra: a jovem do mangá, que muitas vezes se comporta como uma adolescente pirracenta, mas que apresenta um nítido amadurecimento ao longo da trama, não existe; em seu lugar, a versão animada coloca uma mulher séria e ensimesmada, extremamente consciente dos dilemas filosóficos resultantes de sua condição, e que só sofre uma transformação significativa após os eventos do final da história.

As escolhas de Ito e Oshii são compreensíveis, e o resultado final compensa — além de reverente à fonte, o filme demonstra personalidade própria, tanto em detalhes de produção, como a trilha sonora e o design de cenários, como na criação de sequências inéditas (no sentido de que não estão presentes no original) de tirar o fôlego — caso da já icônica cena do mergulho da Major ao invadir um prédio. O anime, portanto, deve ser encarado como uma obra distinta, assim como as diversas sequências que compõem a franquia. Mérito de Shirow, que conseguiu criar uma história repleta de nuances e possibilidades de interpretação.

06 anime

A ideia de que existe um jeito de ser nipônico parece mesmo acertada. Mas, no fim das contas, ela é válida para qualquer etnia. Somos todos moldados pela herança cultural de nossas famílias, pelo nosso círculo de relações, físicas e (cada vez mais) virtuais, e pela sociedade em que vivemos. Mas também temos uma voz própria, capaz de fugir dos padrões e estereótipos. Somos, ao mesmo tempo, indivíduos e parte da máquina. Quem sabe o segredo esteja não em escolher um dos lados, mas abraçar ambos.

Isso foi uma interrogação.

Fonte: Jovem Nerd

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