Mostra coletiva abre hoje na Kamara Kó Galeria

As palavras que a paraense Danielle Fonseca e a carioca Ana Cristina César trocaram foram apenas através das obras literárias que Ana Cristina deixou ao morrer em 1983, quando Danielle tinha oito anos. Mas surgiram também através do ficcional, do que as palavras impressas no lirismo de Ana Cristina provocaram no sensível da artista plástica paraense.

“- Já nos conhecemos?- Sim, nos conhecemos há uns vinte anos atrás, começamos a trocar cartas, correspondências... todas incompletas”, narra o trecho ilusório escrito por Danielle e que apresenta a instalação “Nestas Circunstâncias o Beija-flor Vem Sempre aos Milhares”, que abre dentro da exposição coletiva de fim de ano da Kamara Kó Galeria, neste domingo, como parte da programação do projeto Circular, junto com vários outros artistas residentes e convidados.

A instalação abriga esculturas de caixas de correspondência e fotografias de intervenções com essas caixas em lugares abertos. O trabalho é uma continuação do que Danielle já havia realizando, quando a literatura lhe remeteu pensar na troca de correspondência e a falta dela. “Começou em 2009, durante uma pesquisa na qual fiz um vídeo baseado no livro da escritora Virginia Woolf, ‘Rumo ao Farol’, na qual um menino se indaga, juntamente com a mãe, como pode um faroleiro passar dias, meses sem receber cartas, jornais, revistas, ficar isolado somente com a monotonia das mesmas ondas. Então construí a primeira caixa para, metaforicamente, o tal faroleiro poder receber cartas, e depois instalei no farol da Ilha do Mosqueiro, meu farol de referência afetiva. A carta é um meio de recuperação da escrita, de interação entre palavra e imagem também”, explica a artista.

A caixa, que tinha a impressão “Palavra e Água”, participou da intervenção para ser fotografada e filmada, mas depois foi até a galeria, onde começou a receber, de fato, cartas. “Já instalei em diversos lugares e sempre recebo no final da instalação as cartas mais diversas. A maioria escreve para o faroleiro (risos). Estou guardando as cartas, ainda não utilizei em trabalhos, mas há retornos ótimos, como uma menina que escreveu que depois da ver a obra, havia comprado as obras de Virginia Woolf. Houve, enfim, uma comunicação entre nós. Fez a obra valer a pena”, conclui.

Na nova instalação, a caixa de alumínio recebe o aviso “Cartas Doces e Azedas”. Outra caixa traz a sensível impressão de um beija-flor, seguido de “Cartas e beija-flores aos milhares”. As duas inspiradas no mundo poético de Ana Cristina César. “Sou muito ligada à literatura, o que tento tomar cuidado para não apenas parecer estar fazendo releitura da obra escrita. Gosto muito do concretismo na literatura, o que me ajudou a quebrar um pouco a interpretação literal. No caso da Ana C. César, esse poema me persegue há longos anos. Somente agora me senti à vontade para pensá-lo plasticamente”, declara a artista, confirmando que seu trabalho é de uma arte de composição poética, que também inclui palavras, imagens e música. É ilusório pensar que a palavra é restritiva ou objetiva, e é isso que Danielle mostra visualmente. A beleza de seu trabalho é o não concluído das reflexões, a correspondência incompleta e a espera de uma caixa de correspondência, na porta de uma casa, num farol, ou no esquecimento.

(Gustavo Aguiar/Diário do Pará)