"Mata os
baianos, mata os baianos, porque eles acabaram com nossas vidas", conta
ter ouvido José (nome fictício), 35, enquanto era agredido em Bento Gonçalves
(RS), onde trabalhadores que viviam em condições análogas à escravidão foram resgatados pela Polícia Rodoviária Federal (PRF)
no último dia 22.
"Achava que
iria morrer, porque eu estava brigando com três. Um me dava uma gravata, outro
vinha com spray de pimenta, outro com cadeiradas, pauladas, choques e até
mordida", relata ele em entrevista exclusiva à Folha de S.Paulo. A surra,
segundo José, era em represália por terem partido dele denúncias sobre as
condições análogas à escravidão a que estavam sendo submetidos.
"Nos levaram,
eu e dois colegas, para um quartinho e, aí, eu só fiz chamar por Deus. Não
morri porque não era minha hora, pois apanhei muito. Se no tempo da escravidão
era o chicote, com a gente foi arma de choque, paus, cadeiras, o que tivesse",
diz José, um dos 208 trabalhadores mantidos em condições precárias em um
alojamento no Rio Grande do Sul, segundo o Ministério do Trabalho.
De propriedade do
empresário baiano Pedro Augusto Oliveira de Santana, a Fênix, que recrutou
José, atuava como prestadora de serviço às vinícolas Aurora, Cooperativa
Garibaldi e Salton que, após a divulgação do caso, repudiaram, em nota, a conduta da
intermediária de mão de obra.
Nesta quarta-feira
(1º), o MPT se reuniu com representantes das três vinícolas. Elas receberam o
prazo de dez dias para reunir documentos para que o MPT avalie a extensão da
responsabilidade das empresas e eventuais punições.
Em nota enviada
pelo escritório do advogado Augusto Werner, que representa tanto a Fênix como
seu proprietário, a intermediadora de serviços diz não aceitar qualquer tipo de
trabalho ilegal, além de apurar qualquer suposta irregularidade a partir dos
relatos dos trabalhadores.
Também investigado
pela PF e pelo MPT, o proprietário da pousada, Fábio Daros, não respondeu às tentativas
de contato da reportagem. Funcionários do local afirmaram à reportagem que
"há exagero" nos relatos dos trabalhadores resgatados.
PROMESSA DE SALÁRIO
DE R$ 3.000 ACABOU EM DÍVIDAS IMPAGÁVEIS, DIZ TRABALHADOR
Desempregado, com
ensino fundamental até a quarta série, pai de três filhos, José diz ter sido
atraído por um anúncio na internet da Fênix Serviços de Apoio Administrativos,
que oferecia vagas para trabalho na colheita de uva em Bento Gonçalves, com
salário de R$ 3.000.
Natural de
Salvador, o trabalhador falou à Folha de S.Paulo na tarde desta quinta-feira
(2), enquanto participava de reunião com as advogadas Lillian Moretti e Luciana
Vieira, que formam a dupla de defesa de cinco das vítimas.
Após o primeiro
contato com a empresa, segundo José, os trabalhadores foram chamados a levar a
documentação para assinar contrato e foram enviados de ônibus a Bento
Gonçalves, aonde chegaram após quatro dias de viagem.
No desembarque, a
primeira surpresa do grupo veio com a informação de que teriam que pagar pela
estadia no alojamento, afirma José. Ele e os outros trabalhadores foram
alocados na Pousada do Trabalhador, uma união de três imóveis
("puxadinhos") onde se alojavam centenas de trabalhadores rurais,
além de pensionistas regulares, em Bento Gonçalves.
De acordo com a
Inspeção do Trabalho do MTE, o local tinha condições insalubres, como teto
baixo, mal ventilado, sem as mínimas condições de higiene, banheiros sujos e
colchões desgastados.
José conta que, a
partir de 28 de janeiro, começaram jornadas extenuantes de trabalho, a partir
das 4h. "Éramos acordados aos gritos, tapas nas portas. Os baianos éramos
chamados de demônios, diabos", relata.
Durante a viagem
para as vinícolas no entorno de Bento Gonçalves, cada trabalhador recebia um
copo de café com um pão e uma marmita. "Que estragava no caminho, porque
não tinha onde guardar. Dava bicho na comida", diz o trabalhador.
Como a comida era
em quantidade insuficiente, segundo ele, os trabalhadores se viram obrigados a
comprar no mercadinho, que também pertenceria ao empresário. "Uma caixa de
leite custava R$ 10, dois ovos saíam por R$ 4, para se ter uma ideia", diz
ele.
José diz que a
conta só aumentava, porque ele não recebia dinheiro algum, nem para se manter
nem para enviar à família. O pagamento prometido, segundo ele, era retido sob o
argumento de que pagaria as dívidas dos trabalhadores com hospedagem e
alimentação.
Diante da situação
em que se encontravam, José tomou a iniciativa de registrar as violações por
meio de vídeos feitos com celular. Foi o estopim para que os funcionários do
contratante começassem as agressões, tanto físicas quanto verbais.
Nessa mesma noite,
no último dia 22, os três aproveitaram a distração dos capatazes para trancar a
porta por dentro com um cadeado, segundo o trabalhador. Em seguida, pularam de
uma altura de quase três metros, passaram pelo jardim e se esconderam numa mata
perto do alojamento.
"Passaram a
noite nos procurando, achando que tínhamos fugido para longe, mas a gente
estava bem pertinho", sorriu. "Nós saímos com a roupa do corpo,
apenas com os documentos. Tivemos que passar a noite agarrados na mata para
suportar o frio", disse.
Na manhã seguinte,
os três procuraram a polícia em Caxias do Sul, município vizinho, para
denunciar o caso. "Os policiais nos trataram muito bem. Ficaram de boca
aberta com tudo aquilo que estávamos contando e nos acompanharam até o alojamento",
disse.
Após o resgate, os
trabalhadores foram enviados para um ginásio em Bento Gonçalves, de onde 194
partiram de volta à Bahia na última sexta-feira (24). O grupo chegou ao estado
na segunda-feira (27). Alguns ficaram em cidades pelo caminho, como Feira de
Santana (BA).
"A sensação
foi de alívio, de estar de vivo, de poder ver meus filhos, a mãe de meus
filhos, minha família, os meus. Me senti seguro", diz o homem, que começou
a trabalhar aos 12 anos como carregador de compras na feira de São Joaquim, em
Salvador.
"Aquele
vereador [Sandro Fantinel, expulso do Patriotas de Caxias do Sul por ataques
xenófobos aos trabalhadores nordestinos] não conhece os baianos. A gente
trabalha muito. Ele precisa saber que o coco que ele bebeu, a cama em que ele
dormiu no hotel, foi gente trabalhadora da Bahia que acordou cedo para
servi-lo", diz.
A advogada Lillian
Moretti informou que, desde quarta-feira (1), o escritório começou a ouvir os
trabalhadores. "São relatos muito fortes, pesados, dolorosos, em pleno século
21, de pais de famílias que saíram de seu estado para passar por esse
trauma", contou.
A advogada diz que
os trabalhadores já começaram a receber os valores referentes à rescisão. Além
dos R$ 500 no acordo firmado pelo MTE com a empresa para que os trabalhadores
voltassem para casa, o homem diz já ter recebido R$ 3.800.
"Vamos ajuizar
uma ação individual de dano moral para amenizar o sofrimento por que
passaram", antecipa. "Foram cometidos diversos crimes, como tortura,
cárcere privado, agiotagem. Os responsáveis vão responder nas esferas cível e
trabalhista", afirma Moretti.
Por email, o
advogado Augusto Werner respondeu que a defesa dos suspeitos ainda está
colhendo "todas as informações necessárias a uma completa elucidação dos
fatos, que ainda estão se desenrolando".
"Te adianto
que a empresa não concorda com a imputação de ter mantido seus funcionários em
condições análogas às de escravo e, consequentemente, este tem sido o impasse
com o MPT (Ministério Público do Trabalho)", diz o texto.
O MPT informa que a
empresa propôs o pagamento de danos morais individuais aos trabalhadores, sem
prejuízo de que as vítimas possam ajuizar ações reclamatórias. O valor proposto
é de cerca de R$ 600 mil, além de R$ 1 milhão em verbas rescisórias.
Em carta aberta à
sociedade, a Vinícola Aurora publicou que os recentes acontecimentos envolvendo
a relação da empresa com a Fênix "envergonham e enfurecem". A Aurora
também pede "as mais sinceras desculpas aos trabalhadores vitimados pela
situação".
Já a Cooperativa
Garibaldi informou ter recebido "com surpresa e indignação" as
denúncias de práticas análogas à escravidão. A empresa diz ter encerrado o
contrato de prestação de serviço e se colocado à disposição das autoridades
para colaborar com as investigações.
Também em carta
aberta, a Salton informou que, ao tomar ciência "do gravíssimo resgate
ocorrido nas dependências da empresa prestadora de serviço, suspendemos
imediatamente o contrato de trabalho", diz o comunicado.
Seja sempre o primeiro a ficar bem informado, entre no nosso canal de notícias no WhatsApp e Telegram. Para mais informações sobre os canais do WhatsApp e seguir outros canais do DOL. Acesse: dol.com.br/n/828815.
Comentar