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Uma jornada ao Santo Daime

Contemplando a chegada da noite diante de um céu nublado em Benevides, observava as quatro colunas de fumaça saírem lentamente das panelas alinhadas sobre os círculos do braseiro da casa de feitio do Santo Daime, nome dado por esta doutrina brasileira à a

Contemplando a chegada da noite diante de um céu nublado em Benevides, observava as quatro colunas de fumaça saírem lentamente das panelas alinhadas sobre os círculos do braseiro da casa de feitio do Santo Daime, nome dado por esta doutrina brasileira à ayahuasca. Havia faltado energia elétrica por alguns minutos e as chamas davam um tom avermelhado à noite, deixando o cenário ainda mais fenomenal.

Considerada sagrada por diversas civilizações indígenas da Amazônia, a ayahuasca é uma bebida preparada a partir da infusão do cipó Banisteriopsis caapi (jagube ou mariri) e das folhas da Psychotria viridis (chacrona ou rainha). Seu período de feitio é realizado anualmente no Céu de Belém, igreja do Santo Daime localizada no final de uma arborizada estrada que dá acesso a alguns dos principais igarapés do município.

Este momento é um dos mais importantes para a igreja. No processo de feitio é produzido todo o Daime que será consumido ao longo do ano. Parte da bebida também é destinada a outras irmandades paraenses. Os frequentadores, que geralmente se reúnem duas vezes por mês, passam aproximadamente oito dias seguidos dedicados aos trabalhos de produção do Daime.

O PREPARO DO SANTO DAIME

Logo que chegamos ao Céu de Belém, percebemos a imagem de Mestre Irineu – como é chamado pelos membros – presente em todos os lugares da igreja. Sempre de olhar profundo e semblante sério, o maranhense estava estampado em pôsteres, pinturas e fotos, como quem observava cada detalhe do que acontecia.

A história da doutrina conta que o mestre do Santo Daime conheceu a ayahuasca no início do Séc. XX, no estado do Acre, e mais tarde, após ter recebido um chamado da Rainha da Floresta - denominação dada pelos daimistas à Virgem Maria -, incluiu elementos cristãos ao universo ayahuasqueiro e criou a doutrina espiritual.

Neto de escravos cristãos – há relatos de que seu pai continuou nesta condição mesmo após a abolição –, Irineu atravessou a região amazônica para trabalhar principalmente no controle fronteiriço e na extração do látex em florestas da tríplice fronteira entre Brasil, Bolívia e Peru, por volta de 1912. Sua biografia, Eu Venho de Longe, narra uma breve passagem do maranhense por Belém, onde teria trabalhado como jardineiro.

Ele teria recebido o chamado da santa quando trabalhava na mata por volta de 1913. Nesta primeira experiência, Irineu teria permanecido dentro da densa floresta por quase dez dias, tomando a bebida e recebendo instruções divinas sobre os princípios da doutrina. Durante o encontro, teria recebido da Virgem o primeiro hino do Santo Daime, chamado Lua Branca (escute abaixo). Desde então, Irineu foi recebendo de maneira gradativa mais fundamentos, para que mais tarde pudesse criar, no Acre, o Santo Daime. Atualmente, a doutrina amazônica se expandiu de maneira impressionante por todo o mundo, tendo igrejas em todos os estados brasileiros e em mais de cinquenta países.

Homens e mulheres ficavam separados durante as manhãs e as tardes, e reuniam-se na casa de feitio sempre na chegada da noite, que vinha em alguns dias fechada por carregadas nuvens, e em outros mostrando uma esplêndida lua nova no céu. Concentrados em volta das rainhas, as mulheres, que passavam o dia colhendo e limpando cuidadosamente cada folha, e os homens, que faziam o mesmo com o cipó, realizavam uma oração, pedindo força e proteção aos seres divinos para a madrugada intensa de esforços na boca da fornalha.

Essa fronteira bem definida entre as forças feminina e masculina também se reflete através nos próprios componentes da bebida. No Santo Daime, o princípio simbólico feminino é representado pela folha rainha, portadora do DMT - substância psicoativa ligada ao estado de consciência e que é encontrada in natura em mamíferos e várias espécies de plantas –; e o princípio masculino pelo jagube, que contém duas substâncias inibidoras da enzima catabólica MAO. Esta enzima bloqueada pelas substâncias do cipó possui como função regular a distribuição do DMT natural em nosso organismo. Ou seja, quando ingerida, a ayahuasca bloqueia a MAO, liberando uma quantidade do nosso DMT interno, ao qual, geralmente, nosso corpo não está habituado. Para muitos a experiência é transcendental.

A COLHEITA

A experiência com a ayahuasca pode fornecer ao usuário a percepção da existência cósmica, conceito presente em diversas culturas e que também, principalmente a partir do século passado, começou a ser pesquisada mais seriamente por diversos homens do mundo científico, como por exemplo o escritor Aldous Huxley ou, mais recentemente, o premiado astrofísico Neil deGrasse Tyson, ambos com contribuições importantes sobre o tema. Na tentativa de definir este sentimento, algumas pessoas com quem conversamos durante os dias de feitio relataram a existência de uma frequência, onde é possível experimentar um sentimento de unidade com todos os seres vivos do universo. Para muitos, a ayahuasca é misteriosamente um ponto onde ciência e espiritualidade se fundem e se confundem.

Além da percepção cosmológica, a ayahuasca também pode oferecer ao usuário uma experiência por lugares desconhecidos de seu inconsciente, o que vem sendo estudado, e em alguns casos comprovado, por diversos estudos nacionais e internacionais da área acadêmica e científica. Um dos cientistas mais atuantes nas pesquisas sobre a ayahuasca, Jordi Riba, farmacólogo espanhol incluído pela revista Rolling Stone na lista das 25 pessoas mais influentes no futuro da ciência, dedica sua carreira aos estudos de substâncias psicoativas que produzem mudanças na percepção e cognição. O cientista catalão, especialista em farmacologia do sistema nervoso central e neurociências em geral, utiliza a ayahuasca em suas pesquisas para analisar sua eficácia na recuperação de memórias emocionais, que por vezes aparecem sob formas semelhantes aos sonhos. Estes resgates, de acordo com Jordi, são fundamentais para ajudar pessoas a conhecerem as forças de seus inconscientes e se libertarem de traumas do passado.

A bebida indígena também está associada a cura de vícios e outros transtornos. Durante os dias de feitio tivemos contato com relatos emocionantes, de pessoas que conseguiram superar males como a dependência química ou a depressão com a ajuda do Daime. Ainda não é uma unanimidade no mundo científico, mas, cada vez mais estudos, como os de pesquisadores da USP e da Universidade de Cambridge, ambos publicados na revista britânica "Psychological Medicine", comprovam a eficácia da ayahuasca na diminuição dos sintomas de depressão grave. Para muitos com quem conversamos, o poder de cura pareceu ser uma firme convicção, independente dos estudos.

Esta certeza sobre a eficácia do Daime foi descrita a mim por um dos membros fundadores do Céu de Belém, que a pedidos não foi identificado. O homem, que cantou e tocou atabaque dia e noite durante todo o feitio, contou sobre como a doutrina foi fundamental para que conseguisse vencer a dependência química que estava destruindo sua vida e o afastando do filho, seu “bem mais precioso”. “Senti a solidão de perto quando meu filho se afastou. Firmei no Daime, que me segurou e me levantou, me mostrando o caminho. Essa bebida tem um poder sagrado e com amor, devagarinho, eu consegui vencer”, contou, lembrando que para usar a estrela – artefato usado pelos membros fardados da doutrina - é preciso ter amor e se dedicar em ajudar o próximo, “dar para receber”.

O VINHO SAGRADO

O Santo Daime e a música também se entrelaçam. Os daimistas costumam dizer que todos os ensinamentos e princípios morais do Santo Daime estão nos hinos, basta escutá-los com atenção e praticá-los no dia a dia. Alguns com quem conversei consideram os hinários como uma versão adaptada da Bíblia, mais moderna e simplificada. Existem inúmeros hinários no Santo Daime, entre eles O Cruzeiro, de Mestre Irineu, e O Justiceiro, de Padrinho Sebastião, dois dos mais difundidos.

Para Thomás de Souza, um dos músicos da doutrina, os hinos ajudam o participante do ritual a evoluir seu nível de concentração, uma vez que é necessário um tipo de esforço para absorver, tanto os ensinamentos presentes na letra, como a ritímica dos cantos, entoados como mantras com o poder de levar o usuário a áreas desconhecidadas de seu inconsciente.

“A doutrina é musical. Os rituais são conduzidos por hinários, que é o conjunto de hinos recebidos por pessoas importantes da doutrina. A música ajuda o ser humano a focalizar sua atenção. Os ensinamentos que o Daime tem a oferecer encontra-se dentro desses hinos, que são cantados durante o ritual”, contou Thomás, que costumava dedilhar seu violão sempre de olhos fechados durante os trabalhos.

A energia da musicalidade estava presente durante todas atividades do feitio. Sempre havia algum membro do CDB cantando um hino ou tocando algum instrumento pelas matas da igreja. Durante os trabalhos noturnos, essa energia se intensificava e parecia dar mais força aos daimistas. Era só a noite cair que os atabaques começavam a rufar, os maracás serpenteavam marcando o ritmo e os violões davam o tom ao feitio. Mesmo cansados, todos pareciam tomados por um contagiante sentimento de felicidadede a cada vez que uma panela com Daime era deitada na calha, e o líquido cor de terra escorria, esfumaçante, parecendo dançar no mesmo ritmo dos hinos e dos acordes, até o recipiente onde seria guardado.

No quarto dia o fogo foi aceso. Nos últimos três as tarefas haviam sido árduas para os daimistas, que dividiram-se entre a colheita, raspagem e “bateção” (maceração) de mais de 450 Kg de jagube e 90 Kg de folhas rainha. Quando Seu Carlos - um dos membros mais queridos da igreja - arremessou as lenhas na fornalha, as chamas cresceram e a concentração dos feitores também, na mesma intensidade das labaredas.

Acompanhado por vários ajudantes e caminhando dentro da armação de vigas e telhas de amianto da casa de feitio, o médico Daniel Werneck conduzia o feitio pela primeira vez. Desde seus primeiros meses na doutrina, há mais de 17 anos, ele se interessou pela complexa magia da produção do Daime. Desde então, Werneck decidiu mergulhar nos estudos sobre a alquimia.

Tomados pela “força” do Santo Daime, servido em um pequeno altar iluminado por velas e junto à uma foto de Padrinho Sebastião e Madrinha Rita – fundadores da linha seguida pelo CDB e que hoje é representada por Padrinho Alfredo Gregório de Melo – o trabalho prolongou-se no mesmo ritmo por mais três dias. Acreditando serem guiados pelos seres divinos da floresta, os membros da igreja revezavam-se nas tarefas e tudo parecia sincronizado como uma orquestra.

“No entendimento do feitor, o Santo Daime é feito pelo próprio Santo Daime, pois é sob seu efeito e com orientação dos guias espirituais das falanges do Império Juramidam (nome utilizado pela doutrina para definir a ligação entre Mestre Irineu e seus seguidores) é que todos contribuem e se sabe o momento em que o Vinho Sagrado está pronto”, contou Dr. Daniel.

SANTO DAIME PELO SANTO DAIME

Na segunda-feira (14), último dia dos trabalhos de feitio, tudo havia corrido dentro do planejado e faltava apenas depositar o Santo Daime nos recipientes de 20 litros. O último trabalho havia atravessado a madrugada. Antes do sol raiar, um dos ajudantes do feitio, um mineiro de 52 anos, sentou-se durante cerca de 15 minutos e fez um relato – talvez o mais emocionante que ouvimos durante a jornada –, narrando um encontro com a Virgem Maria em um de seus primeiros trabalhos, quando tinha “vinte e poucos anos”.

Junto a um grupo de pessoas em volta do engenheiro, escutávamos a tudo de maneira impressionada. Depois que ele se foi, já pela manhã, refletimos sobre os mais variados relatos, como o dele, que ouvimos durante os oito dias imersos na mata do Daime. Todos pareciam ser, de alguma forma, o retrato fiel de nosso país, sobretudo, de nossa região amazônica. Assim como o Brasil, o Santo Daime é miscigenado, é o resultado de toda a história que se passou em nossa terra. Pensando dessa maneira, parece fazer mais sentido a visão espiritual brasileira que o Daime nos mostra: um lugar divino habitado por índios, brancos e negros. Todos juntos.

Texto: Igor Wilson

Arte e Fotografia: Maycon Nunes

Edição: Gustavo Dutra

Desenvolvimento: Rodrigo Fiel

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