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Pajé Zeneida Lima continua a realizar rituais de cura no Marajó

Zeneida Lima era menina do mato e na infância andava como bicho revolto pela densa vegetação amazônica, entre o alagado do mangue e a terra firme da Ilha do Marajó. Corria nos pastos da fazenda do pai, o ex-deputado, advogado criminalista e latifundiário

Zeneida Lima era menina do mato e na infância andava como bicho revolto pela densa vegetação amazônica, entre o alagado do mangue e a terra firme da Ilha do Marajó. Corria nos pastos da fazenda do pai, o ex-deputado, advogado criminalista e latifundiário Angelino Lima - aliado do governador Magalhães Barata - e por vezes, dada como louca, precisava ser laçada como boi pelos vaqueiros. Ainda na primeira infância, foi acometida por doenças misteriosas, que a faziam vomitar sangue e tremer de dor. Entoava cânticos em uma “língua enrolada”, tinha acessos de violência com quem chegasse perto dela, agredindo as pessoas. Chegou a ser colocada em uma despensa e trancada por dias na Fazenda Independência, onde morava com a mãe e a empregada Cotinha, enquanto o pai trabalhava em Belém.

Ainda na infância, Zeneida ficou desaparecida por 17 dias no arquipélago. Foi achada por um encarregado da fazenda, dentro de um casulo de folhas e galhos, sem roupa e com vários arranhões e desenhos, como tatuagens, de bichos, folhagens, árvores. Ela relatou que tinha visões de seres compridos, com pele azul escamosa, que a chamavam para dentro da mata e para o rio. Para os demais, que a ouviam incrédulos à época, Zeneida só podia ser louca mesmo. “Esses seres tinham a pele caída, com pé palmiforme e nadadeiras. O rosto era comprido. Eles me trouxeram uma baga de frutas amarelas e me ofereceram. Eu disse que não queria. Eu andava de um lado para o outro do rio como se estivesse sendo carregada. Sentia algo ardendo no meu corpo todo. Quando me encontraram depois que desapareci, só não era surrado o meu rosto, a palma da minha mão e a do pé. Meu cabelo era grande e tinha maçarocas, papai teve que cortar. Fiquei alucinada, para onde olhava, via os homens de pele azul me chamando. Papai era político e achava que meu desaparecimento era golpe. Como me acharam nua, ele me levou para Belém para saber se tinham me tocado, achava que tinham me deflorado, mas não tinha nada”, conta.

Aqueles que acreditavam nas lendas e na cultura oral da região não tinham dúvidas, após o episódio do desaparecimento: a menina havia sido alvo da flechada de Anhanga e por isso era necessário levá-la até um pajé. O pai, cético, achava que tudo não passava de crendice. Já a mãe, Zezé, atordoada com os males da filha e ao mesmo tempo desconfiada dos falsos curandeiros da região, acabou sendo convencida de que era melhor buscar orientação de um mestre da cultura popular. Mesmo desconfiados, com 11 anos, Zeneida foi “sentada” pajé por Mestre Mundico, em Soure, há 72 anos, num ritual místico. Hoje, aos 83 anos, ela diz não lembrar de nada do que lhe ocorrera na tenra idade e conta os causos a partir das memórias da mãe, que ela fez questão de registrar no livro “O Mundo Místico dos Caruanas e a Revolta de Sua ave”, que teve a primeira edição lançada em 1992. Dez anos depois, a obra foi relançada com o título “O Mundo Místico dos Caruanas da Ilha do Marajó”, com uma narrativa autobiográfica em que conta sua iniciação na pajelança cabocla e os episódios que inspiraram o filme “Encantados”, de Tizuka Yamasaki, com estreia nos cinemas no próximo dia 7 de dezembro.

"Fiquei um ano aprendendo a mexer com as ervas. Aprendi muita coisa, vocês não podem imaginar”, Zeneida Lima (Foto: Marcelo Lelis/Agência Pará)

De bruxa temida à curadora respeitada

“Mamãe era muito católica, não queria, mas mandaram buscar um pajé e ele disse: ‘ela foi flechada por Anhanga, tinha que ser sentada com sete anos de idade como pajé. Como já está com 11, já passou da idade, então tem que ser agora’. A partir disso fiz toda a preparação para me tornar pajé com Mestre Mundico. Fui sentada nos sete braços do igarapé e fiquei um ano aprendendo a mexer com as ervas. Aprendi muita coisa, vocês não podem imaginar”, relembra.

No ritual para se tornar pajé, Zeneida conta ter tomado azougue - uma cuia pequena com mercúrio- , junto com uma gema de tartaruga e suco das ervas. “Senti um peso”, diz. Lembra que Mestre Mundico disse à mãe dela que aquilo era a ligação de Zeneida com a natureza.

Ela se tornou pajé – ao contrário do que se possa imaginar, não é uma função incomum a mulheres, na tradição cabocla da pajelança, segundo Zeneida -, mas não deu ouvidos ao que sentia e foi morar no Rio de Janeiro aos 17 anos, já casada e com filhos. Passados 27 anos no Sudeste, ouviu o chamado de seu dom e voltou ao Pará, Foi direto para Soure, na Ilha do Marajó, reconectar-se com o mundo dos encantados, os caruanas – ou a própria força da natureza.

Zeneida é uma personalidade reconhecida e respeitada em Soure. Mas já enfrentou a desconfiança e mesmo a violência de quem não entendia suas relações místicas com a natureza – chegou a ter sua casa atacada por pessoas que a acusavam de ser uma bruxa e de fazer o mal. Hoje é conhecida por ser curandeira, se orgulha da sua trajetória e coordena o Instituto Caruanas do Marajó – Cura e Ecologia, que atende crianças no município.

O QUE É ANHANGA

Mas afinal o que é Anhanga e por que sua flechada acomete as pessoas de forma negativa? Em um dos trechos do livro “O Mundo dos Caruanas”, Zeneida explica:
“Anhanga está em tudo, entre as pessoas, os fenômenos e as coisas, integrando-se no pai e na mãe, no dia e na noite. Tudo converge para uma única entidade, a natureza que permite a nossa existência. Para existir, a natureza precisa estar em completo equilíbrio com todos os elementos que a compõem. Quando o equilíbrio é quebrado, surge a desarmonia entre as pessoas e a ordem natural dos fenômenos e das coisas se altera. Libera-se Anhanga, que atua sobre tudo, até que a natureza reponha em ordem o que foi desarranjado. Anhanga é força, energia e poder de carga negativa. Pode provocar o bem e o mal, porém um é parte do outro”.

“Cura é responsabilidade”, garante a pajé

Zeneida reconhece seu dom e não gosta de contar sobre os casos de cura física e espiritual que já realizou e que está realizando. Ela é simples, tem na natureza a sua maior crença e diz que por isso respeita os caruanas – as entidades que representam essa potência que vem da terra. Ela se diz conectada com essa energia que provém de sua fé e que foi herdada de seus ancestrais - Zeneida é bisneta de Coemitanga, um xamã da etnia Sacaca.


Mas durante a entrevista coletiva para o lançamento do filme “Encantados”, permitiu-se falar um pouco sobre como ocorrem essas curas, reiterando: “cura é responsabilidade”.

“Vocês sabem o que é piquiá? É uma fruta que tem boquinha cheia de espinho, que quando entra é difícil tirar, ele vai enterrando mais. E me procurou uma senhora dizendo que estava cheia de espinhos nas mãos, ela estava chorando. Eu disse: ‘bora ali na cidade onde tem uma árvore de piquiá’. Chegando lá, disse para ela se abaixar e ficar de quatro, e que roncasse como um porco, remexendo a terra. Ela fez tudo isso e depois eu disse que ela poderia voltar para a casa dela, e que voltasse no outro dia comigo. Ela voltou e os espinhos estavam todos pontudos e tirei tudo com uma pinça. Se contar, ninguém acredita, mas isso são coisas que existem e são verdadeiras. São coisas que a natureza mostra. Eu me pergunto até hoje o que eu tenho, o porquê de eu ser assim”, revela.

O que Zeneida não duvida é que seus dons vêm da natureza. E que ela é sagrada. “Quando faço trabalho para curar uma pessoa, encosto ela numa árvore e vejo na própria árvore um termômetro. Sabe quando sobe aquilo branco no termômetro? É assim que vejo subindo e percebo parar onde está a doença da pessoa, se é no estômago, intestino, pulmão, na cabeça. Tudo isso existe, e eu vejo essas coisas. Se alguém me diz que tem uma doença, vou no quintal e vejo as plantinhas, vejo que elas ensaiam uma dancinha e ficam todas transparentes e depois ficam verdinhas. E decido, com essa planta vou fazer isso, assim, assim. Faço o remédio. Alguma coisa demais eu tenho, eu sinto a mudança da lua, do tempo, do vento, da chuva”, diz ela, lembrando que suas pajelanças e misturas de ervas medicinais dependem mais da pessoa para quem ela realiza o ritual e que é necessário equilibrar as energias.

(Dominik Giusti/Diário do Pará)

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