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De volta aos tempos da censura?

Há dez dias, o banco Santander suspendeu a exposição “Queermuseu - Cartografias da Diferença na Arte Brasileira”, montada em seu espaço cultural em Porto Alegre. A decisão veio após críticas e mobilização social encabeçada pelo Movimento Brasil Livre (M

Há dez dias, o banco Santander suspendeu a exposição “Queermuseu - Cartografias da Diferença na Arte Brasileira”, montada em seu espaço cultural em Porto Alegre. A decisão veio após críticas e mobilização social encabeçada pelo Movimento Brasil Livre (MBL), que alegou que as obras expostas incitavam pedofilia e zoofilia. Com isso, calou artistas importantes do cenário nacional e internacional que tinham obras na mostra, como Volpi, Portinari, Leonilson, Flávio de Carvalho, Lygia Clark, Adriana Varejão, e nomes emergentes, como Bia Leite, autora da polêmica obra “Criança Viada”. Dias depois, a peça de teatro “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”, na qual Jesus Cristo é interpretado por uma mulher trans, foi proibida de ser apresentada em Brasília após decisão judicial. Em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, a obra “Pedofilia”, da artista mineira Alessandra Cunha, conhecida como Ropre, foi retirada do Museu de Arte Contemporânea da cidade, depois que um grupo de deputados registrou boletim de ocorrência contra ela, sugerindo que a obra faria “apologia à pedofilia”. Os interditos levaram o Programa de Pós-Graduação em Artes da UFPA a levantar um debate sobre o assunto, com uma mesa redonda hoje, às 15h, com a participação dos professores Drs. Afonso Medeiros, Ernani Chaves e Regina Alves. A entrada é gratuita.

Os casos, que tomaram conta dos debates públicos nas últimas semanas, sobretudo nas redes sociais, revelam algo sobre a compreensão da sociedade brasileira a respeito da arte? O que pensar quando se relaciona o campo da arte aos requerimentos e pedidos de cancelamentos por parte de instituições políticas, jurídicas ou religiosas, ou mesmo de quem não concorda com o conteúdo exposto?

O professor Afonso Medeiros, que é arte-historiador, é enfático: “não podemos ser sofistas”. “Não significa dizer que artistas, cientistas, filósofos e criadores de maneira geral não fazem besteira, mas que as formas de pensamento na arte, na ciência e na filosofia precisam de liberdade para acontecer”, opina.

Ele explica que, do ponto de vista da própria história da arte, casos assim não são novidade. De Platão até nossos dias, muita crítica se escreveu sobre as artes de cada momento histórico. Mas o fato é que a arte sobreviveu a muitas censuras, ao mesmo tempo em que sucumbiu a outras tantas. Um exemplo notório é o da Igreja, que perseguiu artistas “desviados” e, por outro lado, patrocinou muito daquela arte que, em seu tempo, foi considerada “obscena”. Afonso Medeiros explica que, nesse sentido, uma das funções da arte é exatamente contrapor discursos hegemônicos. “Se não temos liberdade para pensar, perdemos um dos pilares da própria democracia, que é a liberdade de expressão”.

O professor lembra, ainda, que as discussões na internet suscitaram outra polêmica: quem teria autoridade para falar de arte? “Surgiram ‘especialistas’ da noite para o dia. Vi alguns cujos posts viralizaram dizendo que aquilo não era arte, condenando aquela ‘coisa’, como se a arte tivesse como única obrigação apresentar um mundo ‘cor de rosa’. Arte não é só interpretação de mundo, é uma forma de interação com a cultura e a sociedade, de incidir e formatar outras formas de interpretar o mundo.

Sempre houve essa querela dentro do próprio campo. Os próprios especialistas (reconhecidos) da área de conhecimento se incubiram de discutir as fronteiras da sua disciplina, seja na ciência, na arte e na filosofia. Quase ninguém se arvora a decretar ‘isso é ciência’ ou ‘isso não é ciência’ a partir de opiniões pessoais, mas muitos se acham no direito de dizer o que a arte é ou não é, a partir de seu próprio gosto ou desgosto. Não podemos permitir isso. Arte é arte e quem determina são os profissionais desse campo de conhecimento, os que se dedicam, os que dão a vida por esse assunto”, defende Afonso Medeiros.

Cena de “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”, proibida pela Justiça em Brasília (Foto: Divulgação)

Professor compara ato à condenação nazista à arte moderna: “degenerada”

O professor Ernani Chaves, da Faculdade de Filosofia da UFPA, concorda e acredita que estamos vivendo uma época de retrocessos, que inclusive instiga riscos de perda da nossa experiência democrática mais recente, “aquela que nos custou tanto a construir após o fim da ditadura”, lembra. “Vivemos um tempo de crescente intolerância, no qual o confronto das divergências, característico de toda democracia, passa a ser resolvido por um tipo de pressão que obedece a regras autoritárias.

No caso, as regras do mercado, cujo objetivo não é, evidentemente, dar à arte a função crítica que ela sempre teve. O episódio do fechamento da exposição ‘Queermuseu’ nos lembra, imediatamente e guardadas as devidas proporções, a condenação nazista da arte moderna como ‘arte degenerada’”, comenta.

Ele acredita que o banco Santander perdeu uma grande oportunidade de levar o debate adiante e que as acusações de zoofilia e pedofilia são absurdas. Para justificar seu pensamento, fala de uma das obras presentes na exposição que conhece, a de Adriana Varejão (“Cenas do Interior II”). “A representação do sexo com animais, que deixou espectadores chocados, remetia, na pesquisa da artista, a práticas comuns em certas épocas e em certas situações, das quais se têm relatos e narrativas.

No Marajó, onde nasci e cresci até a adolescência, esses relatos eram muito comuns e não havia, em princípio, nada de espantoso ou horrível. Pelo contrário, faziam parte do ‘tornar-se homem’. Tais práticas remetem a um certo modo de se relacionar com a natureza, ao mesmo tempo em que nos remete a uma condição que desejamos esquecer, que é a de ‘animais’. A crítica dessas práticas não elimina o nosso desejo de nos unirmos aos animais. Essa é a função dos ‘animais domésticos’, em especial os cães e gatos”, diz.

Artistas também se posicionam contra o fechamento da mostra e os desdobramentos recentes de proibições de atividades artísticas. O paraense Rafael Bqueer traz no nome de trabalho o conceito da mostra - baseado na teoria Queer, que começou a ser discutida no final da década de 1990 e representa o pensamento de que a orientação sexual e a identidade sexual ou de gênero é uma construção social. Atualmente morando no Rio de Janeiro, ele começou a fazer trabalhos de performance em que levanta a temática, como na série “Alice”, em que se veste da personagem famosa de Lewis Caroll, imortalizada nos desenhos da Disney, e passeia por periferias, por lugares que contêm lixo, ambientes destruídos. Com isso, causa reações diversas nos espectadores.

“Tenho uma visão muito crítica sobre esse assunto. O que está ocorrendo é um absurdo. Meu trabalho parte de uma questão das minhas próprias vivências, do preconceito que enfrento desde criança por ter sido afeminado, discuto preconceito, sobre como temos que lidar e crescer de forma hostil. Preciso me posicionar como artista negro e gay, é algo natural no meu trabalho. O Brasil é um dos países que mais mata população LGBT”, comenta.


(Dominik Giusti/Diário do Pará)

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