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Telenovela causa debate sobre representação de culturas na ficção

A trama escrita por Glória Perez com direção artística de Rogério Gomes, “A força do querer”, é uma grande aposta da Rede Globo para 2017 no segmento de telenovelas. O último grande sucesso do horário nobre da emissora foi “Avenida Brasil”, em 2012, e des

A trama escrita por Glória Perez com direção artística de Rogério Gomes, “A força do querer”, é uma grande aposta da Rede Globo para 2017 no segmento de telenovelas. O último grande sucesso do horário nobre da emissora foi “Avenida Brasil”, em 2012, e desde então nenhuma outra telenovela a igualou. “A força do querer”, ambientada no Pará, veio para alavancar o Ibope das nove, mas não faltam críticas à autora, muitas das quais vindas de telespectadores paraenses descontentes com a representação feita do seu estado.

Antes mesmo de estrear, a novela já era alvo de debate. Em março, quando foi anunciado que uma atriz cisgênero iria representar um personagem transgênero, o Movimento Nacional de Artistas Trans divulgou um manifesto no qual destacou a importância de haver personagens trans interpretados por artistas transgêneros.

“Nós estamos aqui e existimos. Cansamos de servir apenas como experimentos cênicos para teatro, cinema, televisão e trabalhos acadêmicos. Queremos e precisamos de oportunidades e emprego”, dizia o manifesto.

As novelas ajudam os telespectadores a conhecerem lugares, culturas e povos distintos, o que exige pesquisas a respeito. No entanto, muitos paraenses desconfiam que a produção de “A força do querer” não realizou uma pesquisa prévia sobre a região. A jornalista paraense Rita Martins, de 34 anos, sente desconforto ao assistir a novela: “Fico triste, o povo paraense esperava ansioso pela estreia, pois o estado finalmente ganharia destaque, tendo em vista que a novela é de uma grande autora”.

Em sua opinião, a trama caiu “na mesmice” ao enveredar para um sertanejo e uma raiz nordestina, retratando o nortista de forma caricata, distante da realidade. A jornalista acredita que houve “preguiça em se fazer uma pesquisa por região e suas peculiaridades”.

Glória Perez é conhecida por tratar as tramas com teor antropológico. Suas narrativas sempre se voltam para conflitos culturais e étnicos, que se misturam com temas como tráfico humano, uso de drogas, imigração, esquizofrenia e muito outros, como ocorreu em novelas como “O clone”, “América”, “Caminho das Índias” e “Salve Jorge”. Para que haja um choque cultural, a autora busca retratar estados ou países distintos que em determinado momento se interligam e impulsionam a trama.

Casamento dos personagens Ritinha e Zeca: cenário humilde para retratar o Pará (crédito: divulgação Rede Globo)

Ana Lucia Enne, professora de estudos culturais e de mídia da Universidade Federal Fluminense (UFF), lembra que toda novela é um “produto discursivo, resultado de múltiplas vozes”. Assim, o autor nunca fala sozinho. Nesse processo, Glória Perez se torna “um sujeito dialógico, atravessada por outras falas”, como as do diretor, da emissora e de seus interesses comerciais, ideológicos, políticos e estratégicos. “É um produto midiático de múltiplas mediações”.

Nesse jogo de disputa de vozes, resta aos representados lutarem por uma representação com a qual se identifiquem. Julio de Masi, defensor público do estado do Pará, deixou claro o seu descontentamento com a trama num post em rede social. Procurado pela reportagem, ele comentou sobre Parazinho, cidade fictícia usada na trama para se referir ao Pará.

“Apesar de a Globo afirmar que a novela não se passa em Belém do Pará, o texto comprova que, mesmo com cenas gravadas em Manaus, Acre e Belém, é nossa cultura sim! Nossas expressões são usadas com frequência nas cenas. Confundiram nossa cultura com a cultura nordestina, pois usar o ‘égua’ aqui é sagrado, como se fosse em Porto Alegre o ‘tchê’ e o ‘visse’ no Nordeste”, compara o defensor público.

Mesmo se mostrando desapontado com a trama, Julio de Masi vê aspectos positivos, já que o Pará, finalmente, está sendo visto por milhares de pessoas Brasil afora: “O importante é estar na mídia em horário nobre e de alcance”.

Numa das cenas que virou motivo de chacota, a personagem Ritinha, interpretada pela atriz Isis Valverde, nadava num aquário inexistente no mercado do Ver-o-Peso. Segundo a jornalista Rita Martins, mesmo sem ser documental, a novela deveria preservar alguma “lógica entre ficção e realidade”.

Estudante de enfermagem da Universidade Federal do Pará (UFPA), Jonathan Sampaio, de 24 anos, classifica a trama como mediana. Assim como os outros entrevistados, ele observou o uso incorreto de expressões e percebeu, ainda, a valorização da cultura carioca em detrimento da paraense. “Estão retratando os paraenses como um povo ignorante e selvagem, que não sabe se comportar diante das pessoas. Devem achar que aqui só tem mato, que se vive em roda de carimbó. A cena que mais me desagradou foi quando a atriz Maria Fernanda Cândido, da personagem Joice, falou para Ritinha que a nossa expressão ‘égua’ é feia, vulgar e que o nosso ‘banho de cheiro’ é macumba”, disse Jonathan.

Porém, Ana Enne pondera: mesmo uma representação sendo a mais “verdadeira” possível não deixaria de ser uma representação da realidade, que deve atender a um público amplo. “Existe o efeito ‘para quem você está falando’. No caso de ‘A força do querer’ não é exatamente para o paraense; é para o resto do Brasil ou para o mundo ter uma ideia do Pará”, diz a professora. Entram em jogo ainda questões estratégicas de mercado, como os interesses turísticos.

O impacto pôde ser comprovado com “Salve Jorge” (de 2012), em que parte da trama foi gravada na Turquia, mostrando um cenário deslumbrante de Istambul e da Capadócia. Um levantamento realizado na época pelo site Hotéis evidenciou que a busca de brasileiros por hospedagem na capital turca aumentou 66% na semana de estreia da novela em relação ao mesmo período do ano anterior.

A jornalista carioca Raissa Lima, de 23 anos, telespectadora assídua de novelas, disse gostar muito de “A força do querer” e percebe o embate cultural entre Pará e Rio de Janeiro da trama como proposital. Em sua opinião, isso não significa que o estado esteja sendo desrespeitado, embora a novela teria falhado em não mostrar um personagem paraense de “poder”, pois apenas os personagens da cidade grande são executivos. Mesmo assim, elogia muito a história: “Acredito que a função dela (da novela) seja incomodar e trazer algo que precisa ser discutido, mexer com a sociedade e falar de assuntos polêmicos. Como em toda ficção, ela desperta o imaginário da população. Certamente algumas pessoas foram buscar ver como é o Pará, suas características. O Pará da novela é uma mistura das culturas de toda região Norte-Nordeste”.

O advento da televisão no Brasil, na segunda metade do século passado, trouxe novos elementos para o debate sobre a identidade nacional, muitas vezes definida a partir de padrões do Sul e do Sudeste, em detrimento de outras culturas regionais, vistas de forma estereotipada. A pesquisadora Ana Enne observa como a telenovela contribui para a construção de discursos sobre a realidade: “Você pode ter a realidade como base e filmar no Pará, no Marrocos ou na Turquia, mas será sempre uma construção. Quando você ‘cola’ essa ficção em algo que existe, cria um selo de autenticidade, como se aquilo fosse o Pará. O público não pensa que aquilo é uma ficção, mas que aquilo é o Pará. O discurso jornalístico faz isso, assim como a novela”.

Desse modo, embora “falhando” em alguns aspectos, as telenovelas são instrumento importante para o debate de ideias e para a visibilidade de determinadas culturas. Mesmo que a ficção não abranja a realidade por completo, não se deveria abrir mão de lutar por melhores representações, segundo a professora Ana Enne.

Apesar das controvérsias, “A força do querer” vem cumprindo o seu papel para a emissora. Dados do Ibope apontam que no fim de maio a novela chegou a alcançar 40 pontos de audiência no Rio de Janeiro e 34,6 na Grande São Paulo. Aos paraenses, ficam as lembranças (nem sempre agradáveis) dos 13 capítulos gravados na fictícia Parazinho.

>> Jackeline de Oliveira Pinho é paraense e estuda jornalismo no Rio de Janeiro <<

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