Artista relembra sua convivência com Décio Pignatari

Nem tudo foi dito. Ontem, 20 de agosto, o poeta, tradutor e ensaísta Décio Pignatari faria 90 anos, e sempre que penso em escrever sobre poetas (seres certamente imortais) lembro do poema “Life”, de sua autoria. Um poema-sequência, segundo Gonzalo Aguiar, ou um cinepoema, segundo Haroldo de Campos.

“Life” foi escrito em 1957 e publicado na “Revista Noigandres” em 1958. À primeira vista parece ser simples (como a vida deveria ser): o próprio desenho do signo usado é o poema: ILFE LIFE. O mais bonito é que nele vida, palavra e poesia se unem e se transformam em Sol, no ideograma que representa o Sol, “que a folha traga e traduz em verde novo, em folha, em graça, em vida, em força, em luz”, como diria Caetano Veloso. E é pensando em vida e poesia que escrevo sobre Décio.

Essa semana encontrei um bilhete deixado por ele no livro “Poesia Pois É Poesia”, de julho de 2005. “Surpreendentemente e subitamente, você, Dâni, surgiu como estrela da rain forest, via email, abrindo meu primeiro portal belenense para o meu fabuloso romance do futuro ‘Obra em Obras – o Brasil’, que solidifica, por antecipação (o portal, não o romance) a nossa amizade, cuja parte gentil e civilizada lhe pertence”.

VENTOVENDAVALIFE. VENTOVENDAVALIFE. VENTOVENDALIFE, assim foram meus dias convivendo com Décio, que em 1956 juntamente com os irmãos Campos, Augusto e Haroldo, formou o grupo Noigandres, que oficialmente lançou neste mesmo ano o Movimento de Poesia Concreta, durante a Exposição Nacional de Arte Concreta no Museu de Arte Moderna de São Paulo- (MAM/SP). Ainda em 1956, também em conjunto com Augusto e Haroldo, lança o livro “Teoria da Poesia Concreta”, iniciando então um dos maiores movimentos de vanguarda da poesia brasileira e mundial, a Poesia Concreta, o incrível movimento verbivocovisual.

Durante os dias que passou em Belém, Décio fez uma espécie de acompanhamento crítico de minha pesquisa sobre Max Martins, concretismo, taoísmo, o Caminho de Marahú, e contou-me, enquanto caminhávamos feito flâneurs numa cidade praticamente vazia por conta das férias de julho (o que considerei muito mais importante que a própria orientação em si), sobre o concretismo; a amizade com Augusto e Haroldo; sobre o significado dos nomes de seus filhos Dante e Serena; sobre as Amazonas, as gregas neste caso (risos); sobre a pele da onça lá no Museu Emílio Goeldi (“olha aí meu poema na pele dela!”); além, é claro, de me provocar o tempo todo, “cadê o poema que escreveu hoje?! Olha lá, hein!?, poucas mulheres na poesia concreta!”.

Tomei aquelas palavras como provocamissão (assim, tudo juntinho mesmo). Como vida. Eis o “Life” novamente. “O Lance é o seguinte...”, foi assim que escrevi ao Décio pela primeira vez, esse abuso na fala foi proposital, eram os dados do acaso de Mallarmé sendo lançados, e o jogo deu certo. Seguimos nos falando por um bom tempo com a promessa de um retorno a Belém, mas nada de andar de barco popopô, disse ele.

Décio me escreveu várias vezes através de fax, sim, por aquele sinal que era transmitido por linha telefônica num papel muito frágil que, com o tempo, desaparecia, se esquecia. E como os dados da vida não param de rolar e jamais aboliram o acaso, houve um momento em que Décio começou a ficar com falhas na memória, feito aqueles papéis de fax que guardei por um tempo mesmo em branco.

Esse é o lance poeta, joguei os papéis fora e revelei o filme da velha câmera analógica com as fotos de nossas andanças por aqui. Ei-las aqui! Ontem farias 90! E como disse Alice Ruiz, “pressupondo que existe memória na morte e dentro dela um calendário. Feliz aniversário”

(Danielle Fonseca especial para o Você)