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GERSON NOGUEIRA

Descaso pelo acaso

A descrição certeira, econômica e sem firulas denuncia o testemunho perfeito da história: “Na Copa (de 70) eu atuei como centroavante; Gerson, como meia-armador; Pelé, de ponta de lança; Rivellino, como armador pela esquerda; e Jairzinho, como atacante pe

A descrição certeira, econômica e sem firulas denuncia o testemunho perfeito da história: “Na Copa (de 70) eu atuei como centroavante; Gerson, como meia-armador; Pelé, de ponta de lança; Rivellino, como armador pela esquerda; e Jairzinho, como atacante pela direita, entrando em diagonal pelo centro. Jairzinho era o camisa 7 no Botafogo. Os únicos, do meio para a frente, que trocaram de função na Seleção fomos eu, que passei de ponta de lança para centroavante, e Rivellino, que era meia-armador no Corinthians e se tornou um armador, um ponta recuado”.

Nunca tinha visto leitura tão didática sobre a formatação daquele timaço montado por João Saldanha e complementado por Zagallo. Todos os analistas que se debruçam sobre 70 cometem o pecado da grandiloquência estéril, vendo genialidade onde havia mais aplicação e método.

Tostão, que esteve lá dentro do furacão, fala com conhecimento de causa e desconcertante humildade. O texto está logo no início de seu mais recente livro, “Tempos Vividos, Sonhados e Perdidos (Um olhar sobre o futebol)”, editora Companhia das Letras. Polivalente, Tostão esbanja talentos múltiplos, como observador privilegiado da cena futebolística nas últimas seis décadas e mostrando qualidades de despojado e atento filósofo.

Seu livro pode ser lido com prazer por qualquer um, fã ou não de futebol ou de esportes em geral. É um ensaio sobre vivências humanas, observações do cotidiano entrelaçadas por uma arguta espiadela nas grandezas e baixezas do mundo moderno. Sua tese sobre a força do acaso é um dos pontos mais significativos da narrativa.

Aprendi com o tempo que os autores utilizam algumas chaves para capturar o público. Alguns não se importam com isso e se preocupam exclusivamente em narrar fatos, elucubrações ou ideias, como se as palavras jorrassem naturalmente, sendo despejadas no papel. Tostão fica exatamente no meio-termo. Escreve verdades e demonstra a capacidade instintiva de prender a atenção. Um craque das palavras.

O livro descreve cenas que muitos já conhecemos, mas tudo vem embalado com sabedoria e estilo, fazendo com que ganhem novos encantos. É o caso, por exemplo, do traumático descolamento de retina após um lance infeliz com o zagueiro corintiano Ditão, em 1968. Em pleno verão do amor, liberação geral das mentes no mundo e ditadura sangrenta no Brasil, lá estava Tostão amargando as incertezas quanto ao futuro profissional nos gramados.

Acabou se recuperando, depois de cirurgia em Houston (EUA), garantindo a condição de primeiro convocado para a disputa do Mundial de 70. João Saldanha ainda estava no comando e gostava muito do jeito de jogar e da maneira de pensar daquele mineirinho de ar retraído, mas de palavras certeiras e sempre bem encaixadas.

Tostão lia muito, principalmente Machado de Assis, Guimarães Rosa e Carlos Drummond de Andrade. Ouvia boa música e saboreava conversas inteligentes. Com isso, ganhou a eterna simpatia de João Sem Medo, que disparava frases bombásticas a cada entrevista e teve a argúcia de perguntar ao próprio centroavante do Cruzeiro em que posição do ataque ele preferia jogar. Tostão disse que podia jogar com Pelé, pois ambos se completavam. Saldanha assinou embaixo. E, depois de certa hesitação, Zagallo também avalizou a ideia. E a história do futebol ganhou uma dupla imortal.

Outras histórias e lembranças enriquecem a obra, incluindo a percepção fina do autor sobre a realidade que o cercava mesmo nos tempos de astro da Seleção. Nunca perdeu de vista que o mundo mudava e que as coisas não se resumiam à resenha com os companheiros no vestiário.

É o olhar atilado que fez de Tostão avis rara no universo boleiro, tanto das décadas imortais como até hoje, quando jogadores de futebol raramente arriscam uma opinião que não seja restrita ao jogo em si. Tostão é diferente e por isso vale a pena ler o que ele escreve. Aliás, quando crescer, quero escrever como ele. Cabra bom.

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